Marcações do/no corpoEnquanto que os objectos-extensão se organizam numa modalização do corpo
que lhe confere um "suplemento modal" como refere Fontanille, permitindo-lhe a
aquisição de um saber-fazer com vista à manipulação do meio ambiente e à sua
inserção no mundo, os objectos-incisão são algo distintos, já que eles não potenciam
a competência pragmática do sujeito, mas antes singularizam para além de remeterem para
um movimento de inclusão colectiva, em torno de grandes significantes. De um modo geral,
e pensando nas funções que desempenhavam as práticas de decoração do corpo nas
sociedades ditas primitivas, temos que tais objectos-incisão, simbolizam, organizam a
funçaõa simbólica em torno do corpo, de modo a sociabilizá-lo, a integrá-lo nas
grandes linhas de estruturação social.
A sociedade actual, na sua pulverização dos modelos culturais, opera um
descentramento da representação, baseada no espelho, para uma diversificação de
configurações que têm nas próteses uma infindável via de exploração e nas
marcações uma outra capacidade de produção semiósica. Inscrever em vez de representar
corresponde a uma apropriação do corpo não como ideal do eu, como miragem ou imagem,
mas como presença, matéria moldável, como suporte de escrita e de assinatura justamente
quando este se desmaterializa no digital. Explorando o corpo enquanto pele, as marcações
várias, desde os piercings às tatuagens, vêm transformar a carne. Apropriação do
corpo não como imagem mas como essa "superfície de inscrição", como
corpo-a-ler ou corpo-livro, dá lugar ao corpo como objecto conceptual por excelência.
A pele como superfície de inscrição marca-se desde logo através da
vivência espacio-temporal à qual vai estando exposta. Entendê-la como suporte de
inscrição é saber ler as mais diversas marcas que nela se inscrevem, é torná-la
superfície de leitura. Aliás, sendo a pele essa zona de contacto com o exterior, é
também ela lugar de incorporação de elementos vários que participam na fabricação de
uma imagem do corpo próprio, como o demonstra Paul Schilder, com a sua análise ao
vestuário e referência aos próprios estigmas variados de que o corpo se marca:
"tudo aquilo que entra em contacto com a superfície do corpo é em maior ou menor
grau incorporado por ele. O homem leva a cabo uma quantidade de tentativas para modificar
a sua imagem do corpo. Tatuar-se, gravar motivos na pele, pintar o corpo é modificar a
sua imagem do corpo /.../".
H. P. Jeudy, por exemplo, refere todo um conjunto de signos que se marcam
na pele e que instituem como que uma escrita natural. São eles, dir-se-ia, da ordem do
sintoma, rasto do tempo no espaço-superfície da pele; marcam o vivido natural ou
acidental. O corpo vai transformando-se num depósito de traços, de marcas, desde a ruga
que se cava mais ou menos profundamente na superfície cutânea, até à cicatriz de
proveniência vária ou mesmo à amputação de membro ou ablação de órgão, vivências
acidentais e estigmatizadas no corpo, que o individuam, conferindo-lhe uma singularidade
que pode chegar a desenvolver um certo culto da fealdade. Se a ideologia do corpo
imaculado sempre interditou estas e outras marcas como máculas de vivência, também
neste capítulo se verificam mutações na própria vivência actual do corpo, sendo a
mácula entendida hoje, antes de tudo, como efeito de investimentos afeccioanis diversos.
Tais marcas de acidentes, estigmas naturais como o são por exemplo as cicatrizes, vêm
sendo cada vez mais inseridas numa certa estética do corpo que não só as incorpora como
lhes concede uma dimensão erotizada, como no citado filme de Cronemberg, Crash. E
se, para Jeudy, a cicatriz não pertence ao mesmo regime de signos por ser da ordem do
destino, mais do que do devir, a posmodernidade vem mostrar uma atitude diversa perante o
corpo, onde a cicatriz entra num imaginário que poderíamos integrar dentro de um
devir-monstro do humano, por onde se imiscuem os procedimentos de alter-ação do corpo,
que são procedimentos de alterização identitária configuradores de uma mutação na
própria subjectividade.
Outras marcas, artificiais estas, como a tatuagem, a pintura do corpo ou
a sua perfuração declaram a recusa da naturalidade do corpo e da ideia de origem. A
tatuagem é uma prática importada e que sempre ficou ligada a uma ideologia colonial a
que se veio juntar uma dimensão de exótico. De emblema do indígena, ela alastrou
posteriormente, a emblema do "selvagem urbano", personificado por exemplo nas
hordas de motoqueiros. A banalização da tatuagem nos nossos dias retira-lhe, no entanto,
qualquer dimensão contestatária, como exibição de uma contra-cultura como o chegou a
ser nos movimentos pacifistas dos anos 60. Ao difundir-se, a tatuagem singularizou-se,
tornando-se numa aparente redundância do corpo próprio. A este respeito, refere M.
DeMello, "as tatuagens são fundamentalmente uma forma de expressar a identidade,
tanto pessoal como colectiva. A tatuagem inscreve a relação da pessoa com a sociedade
para os outros e para si próprio (a), e fazem-no de uma forma que é visível não só
para o utilizador como também para os outros. Excepto quando usada em zonas íntimas, as
tatuagens são usadas para serem lidas por outros. É por esta razão que as tatuagens
como marcadores de identidade não são meras expressões privadas da necessidade de uma
'escrita própria', mas expressam ainda a necessidade de serem lidas de uma certa
forma".
Sendo marca de distinção, de individuação do corpo próprio, ela não
faz senão inscrever esse encaixe em abismo que constitui a própria
apropriação/desapropriação do corpo dito próprio/impróprio. Há todo um efeito
abismal nesta prática de escrita sobre o corpo, que se pode considerar ter perdido grande
parte dos investimentos simbólicos tribais, volvendo-se marcadamente a-significante,
porque joga na ambival~encia daquilo mesmo que fazia dela uma prática identificatória.
Na verdade, trata-se de uma construção em abismo que abandona os dispositivos
especulares para se centrar na corporeidade, no momento mesmo em que essa corporeidade
como real total vem sendo abalada nas suas fundações. Não é mais o corpo que, como imago,
preenche o imaginário do sujeito, mas antes o corpo que se dá a ver, o corpo-imagem que
funciona como visibilidade para o Outro, para além de ele próprio ser o incorporador de
imagens heteróclitas da cultura actual, desde a BD aos retratos e fetiches da cultura
pop. A tatuagem torna-se uma encenação conducente à exibição do corpo enquanto coisa,
à coisificação do corpo. assim, para José Gil, "com a deslocação das
comunidades arcaicas, é o corpo comunitário que se desagrega; e a história inaugura a
busca desvairada desta presença dos corpos para si mesmos." É o que explica, para o
autor, essa busca desesperada da "representação e da incarnação".