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 Para uma Semiótica do corpo

  [ Maria Augusta Babo ] *

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> O Corpo: soma ou sema

> A corporeidade na perspectiva fenomenológica

> O Corpo enquanto pele

> O corpo e as suas próteses

> Como mudar de corpo

> Marcações do/no corpo

> Espectacularização do corpo

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"-Não conhece a sentença a que foi condenado?

-Não/.../ Seria inútil dar-lha a conhecer,

pois vai apre(e)ndê-la no próprio corpo".

Franz Kafka

"Ce qu'il y a de plus profond chez l'homme,

c'est la peau".

Paul Valéry

 

O corpo: soma ou sema

O corpo terá sido, porventura, o ob-jecto/-stáculo a toda uma postura semiótica que viu na linguagem e, mais estreitamente, na linguística, a base da sua elaboração. Obstáculo, mais do que objecto, na medida em que a semiótica o não pôde reduzir por inteiro aos códigos que, no entanto, ele sempre acolheu. Esta perspectiva logocêntrica remeteu desde logo o corpo para um corpo sígnico. L. Marin chega mesmo a perguntar-se se, no que diz respeito ao corpo, poderemos abandonar a noção de signo. Acabando por lhe aplicar as funções da linguagem, como dispositivo meramente operatório, reafirma, no entanto, que "o problema essencial que encontra na sua elaboração uma semiótica do corpo e do gesto reside na sua subordinação à linguística, às suas categorias e aos seus modelos de comunicação.".

Na esteira de uma antropologia herdada de Mauss, José Gil entende o corpo como espaço de inscrição de signos/códigos. Entidade ela mesma não codificável, o corpo acolhe os códigos que nele se vêm ancorar ganhando assim um estatuto de significante flutuante. Esta noção fabricada pela antropologia responde à aporia entre uma corporeidade muda do corpo e a sua inegável capacidade de se relacionar com a significação. Apontando claramente para o desenvolvimento de uma semiótica do corpo - "convirá dar um lugar de importância ao corpo, à sua aptidão para emitir signos, para os inscrever sobre si mesmo, para os traduzir uns nos outros" (1997, p.32) - a perspectiva de J. Gil não esgota o corpo nessa aptidão semiótica/semiósica.Plural, o corpo possui a capacidade de captação de signos, que faz dele um corpo-inscrição, corpo marcado pelo espaço e o tempo e pelos códigos sociais; a capacidade de tradução que o transforma num operador intersemiótico de que os sintomas em geral são bem o exemplo; mas ele possui ainda a própria capacidade de produzir significância e essa é a sua condição mesma enquanto corpo vivo.

Se não há uma língua do corpo, se o corpo não se pode reduzir a falar a língua linguística, o que parece acontecer é que ele só desenvolve esta espécie de infra-língua aquando do acesso à linguagem verbal (ibid, p. 47). Quer isto dizer que o domínio e o exercício semiósico do corpo só advêm como expressividade na medida em que houve uma integração linguistico-cultural. A língua será portanto condição da própria infralíngua, mesmo se esta é não-linguística, pré-verbal ou até não-verbal. Eis a partilha das águas, uma distinção que permite, ao subjugar todo o corpo à linguagem, no mesmo movimento libertá-lo, como corporeidade que resiste. É que, apesar de semantizado ou semiotizado, o soma resiste irremediavelmente ao sentido, não sendo tão pouco esse resto, corpo despojado de vida, como era entendido pelos gregos, na sua configuração de soma, cadáver. Trata-se de um corpo vivo, isto é, de uma singularidade no mundo, face ao outro, constantemente interpelado, atravessado por fluxos afeccionais.

Aparentemente orgânico, natural, o corpo alia uma indeterminação sempre flutuante, entre a dimensão semiósica que o atravessa e constitui e a dimensão e-motiva que o movimenta.


1 - cf. entrada sobre "Corps - la sémiotique du corps", in Encyclopaedia Universalis, Paris, 1985

2 - cf. Galimberti, U., 1998, Les raisons du corps, Paris, Grasset- Mollat. No capítulo dedicado à semiologia do corpo, Galimberti defende justamente uma abordagem onde se joga a ambivalência.