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 Para uma Semiótica do corpo

  [ Maria Augusta Babo ] *

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> O Corpo: soma ou sema

> A corporeidade na perspectiva fenomenológica

> O Corpo enquanto pele

> O corpo e as suas próteses

> Como mudar de corpo

> Marcações do/no corpo

> Espectacularização do corpo

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O Corpo enquanto pele

Há no entanto uma configuração que vem tomando o lugar do corpo e que é a pele, não como embalagem, invólucro, mas como forma sensível e visibilidade do corpo. Numa perspectiva antropológica, a pele tendeu realmente a funcionar como limite, zona de separação entre o dentro e o fora, fronteira instituinte de um espaço sagrado, e de uma zona de poluição, de interdito, de legislação das práticas do corpo, das condutas sociais e dos valores prescritos ou interditos. Uma antropologia do corpo mostra assim a assunção da dimensão político-sagrada dos limites identitários, organizando códigos mais ou menos rígidos. É por referência a uma ordem do simbólico instituída que a impureza se marca no limite do corpo e que esse limite ajuda a formar a própria identidade, instaurada nas duas vertentes, a da rejeição, como limite para fora, e a do segredo, como limite para dentro.-

Fenómeno curioso e que vem marcar novas abordagens ao corpo é o da atribuição de uma espessura significante à pele, entendida comunmente como película, limiar, fronteira e contorno da corporeidade. A espessura da pela permite olhar o corpo aglutinando várias cadeias semiósicas e conceber assim um novo topos de análise por onde passam muitas das questões actuais sobre o corpo. É Didier Anzieu o autor deste novo conceito que hifeniza o eu à pele. A pele adquire a função de continente de todo o fluxo sígnico que investe o corpo desde a alimentação à competência linguístico-cognitiva, não deixando contudo de ser limite, couraça protectora das agressões externas as mais variadas e demarcando os limites topológicos do corpo. Esta perspectiva reforça, no corpo, as dimensões visual e táctil que têm na pele o seu ponto respectivo de ancoragem. Por isso, o corpo-enquanto-pele é por excelência superfície de contacto, abertura ao mundo e ao(s) outro(s), lugar de comunicação e partilha. O eu-pele é entendido em Anzieu numa tripla derivação tropológica. Em primeiro lugar, há uma correspondência metafórica entre o eu como envelope psíquico e a pele como envelope orgânico; em segundo lugar, uma relação metonímica liga o eu à pele na medida em que eles se inscrevem ao mesmo tempo como dentro e fora, um englobando o outro; por fim, o eu e a pele estabelecem uma elipse, como figura englobante, da mãe e da criança. Na verdade, este eu-pele recobre um lugar físico que serve ao mesmo tempo de ancoragem à fabricação de uma imagem de si. E é justamente sobre este lugar de confluência que é possível inscrever marcas, marcar o corpo, tornando-o, à partida, superfície de inscrição.

É desmontando toda a tradição que remete a pele para o estatuto de couraça, desempenhando uma função de protecção que argumenta François Dagognet, quando afirma que a herança do corpo é a herança do "fantasma da interioridade (orgânica ou mesmo ontológica), como se todo o ser se dissimulasse /.../ por detrás de uma armadura, quando o que acontece é que ele vive na sua vibrante perifieria (simultâneamente sólida e vulnerável, ou ainda, frágil e resistente)" . Partindo do discurso clínico sobre o corpo, nomeadamente da dermatologia, o filósofo desenvolve toda uma análise que designa por dermociência e que tem como argumento fundador essa mesma ideia de que a pele é espessa dado que ela é reveladora do estado do corpo orgânico na sua totalidade. Não sendo propriamente uma película, a pele permite olhar o corpo como um todo, como uma forma material que possui, como todas as formas, o seu verso e reverso, a que o corpo-pele alude: "não há montanha sem vale, nem verso sem reverso! Não há vísceras sem a respectiva epiderme!" (ibid, p.13). Não se afirma aqui qualquer pensamento da aparência, a pele não é puro invólucro de uma qualquer essência velada, a pele é, por excelência, a zona de interface do corpo. Ao entender-se como interface, a pele participa de um estatuto de reversibilidade que não possuía até então.

A própria medicina vem operando um descentramento do interior do corpo para a pele. Dá-se uma inversão da ideologia dentro/fora, visto que o fora não é um simples envelope, uma fronteira, mas o próprio lugar da sensação. A importância da pele vem do facto de ela estar em contacto com o Outro. Retomando a medicina hipocrática, marcadamente cutânea, a sintomatologia apoia-se na pele como zona capaz de reflectir o estado clínico do corpo. Sendo esta o espaço de teatralização somática do eu, tem na alergia o seu revés: allos - outro+ ergon - acção. Todas as erupções cutâneas são tratadas nesta perspectiva alergológica, como zona e efeito de contacto ou contaminação do outro. Os problemas alergológicos serão então reacções extremadas do corpo face ao exterior. A cutis deixou de ser barreira para funcionar como ponto de confluência entre o corpo e o mundo, como o interface do corpo. É que, a superfície cutânea é ainda o lugar de erupção e visibilidade das patologias orgânicas o que indistingue, a partir daí, as categorias da medicina interna e externa. É toda uma perspectivação nova do corpo que abandona as grandes clivagens de especialidade, assentes numa perspectiva funcional dos órgãos, para adoptar uma visão do corpo como um todo, de que a pele é, não um invólucro passivo, mas a verdadeira "potência que assegura a nossa identidade e a sua defesa" (ibid).

 

 

11 - cf. M. Douglas, De la souillure,Paris, Maspero, 1971

12 - cf. Descombes, V., 1977, L'inconscient malgré lui, Paris, ed. Minuit.

13 - Dagognet, F., 1993, La peau découverte, Paris, Les Empêcheurs de Tourner en Rond, Délagrange/Synthélabo, p.90.