Como mudar de corpo A
questão que se coloca actualmente ao corpo parce ser portanto de uma outra ordem. Não se
trata já de descrever, de aceitar, de interpretar os limites do corpo, ou sequer de falar
do corpo como matéria imutável na sua forma, mas antes, como refere Bernard Andrieu, de
se perguntar "como mudar de corpo?". É que, a partir do século XX, a questão
que se coloca ao corpo não estará mais assente na sua natureza supostamente imutável,
"a definição do corpo humano deixa de ser definitiva: podendo agir sobre os genes,
e não unicamente sobre o soma, o património genético que até então era
herança transmitida pela família, é posto em causa pela acção da ciência". Na
verdade o que se exige hoje é um corpo mutante onde a manipulação genética e a
transfiguração do corpo provocam uma verdadeira ruptura no corpo dito natural que deixa
de ser assumido como destino. Quer isto dizer que o sujeito deixa de ter de se sujeitar ao
seu corpo, podendo, pela primeira vez, modificar-lhe quer a imagem quer a natureza. O
corpo como lugar do sujeito passa a ser um corpo fabricado, senão moldado, não somente
pelo vivido como pelas intervenções de vária ordem que nele se podem operar. A noção
de destino aplicada ao corpo é asim substituída pela de devir carne-subjectivada.
Os dispositivos-extensão têm eles próprios raízes em todo um
imaginário maquínico que faz aparecer as máquinas simuladoras das várias performances
do humano. Mas o que se passa é que o corpo protésico, uma simbiose do orgãnico e do
maquínico, dá lugar a um corpo outro, onde deixa de fazer sentido por exemplo a
oposição natureza/cultura. Tibon-Cornillot chama a este processo que se enceta com
múltiplos efeitos, desde a bomba atómica ao foguetão e ao satélite, a
"mecanização do vivo", que institui uma certa dependência do corpo a
dispositivos que a ele aderem e se incorporam, transformando ou transfigurando o próprio
material genético. Esta nova "natureza biológica", como lhe chama, é
constituída de objectos "racionais-vivos" ou "artificiais-vivos" que
novos campos do saber como as ciências informáticas, as ciências cognitivas ou a
biologia genética estudam. Segundo ele, e ao contrário daquilo que se passaria com as
técnicas ancestrais na sua relação com o corpo, o corpo humano actual está fortemente
exposto a transmutações. Enquanto que ao longo da história o desenvolvimento técnico
manifestado na produção de utensílios mantinha-os relativamente destacados do corpo,
não-incorporados, portanto, o que permitia garantir uma certa disponibilidade e liberdade
do corpo, o que acontece hoje em dia, segundo o autor, é uma relação outra que a
técnica estabelece com o corpo: o desenvolvimento vertiginoso da técnica não coincide
com a estabilização do corpo humano: "diferentes das ciências na sua finalidade e
relação com o corpo humano, encarregadas de preservar a integridade da espécie, desde
os tempos mais remotos, actualmente as técnicas participam de forma privilegiada na sua
transformação" (ibid, p.288).
20 - in, Les cultes du corps - éthique et sciences, Paris,
Harmattan, 1994, p.20.
21 - in, Les corps transfigurés: mécanisation du vivant et
imaginaire de la biologie, Paris, Seuil, 1992, p.231.
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