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  Olhar Armado e Eros Tecnológico em Heiner Müller

  [ José Galisi Filho ]

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> Olhar Armado e Eros Tecnológico em Heiner Müller

> O olho de Urânia

> Olhar fenomenólogico

> A blindagem do eu e Eros tecnológico

> O resto não dissimulado

> A Pátria e o Corpo das Palavras

O olho de Urânia

A intensidade do olhar de Urânia fixado por Fichte é o limiar de uma nova constelação de reflexividade instaurada pelo idealismo alemão e seu teatro filosófico. A emergência do ponto de vista transcendental introduzia em toda Darstellung ("representação") a duplicação funcional do alfabeto da realidade, na qual, a partir de então, imbricam-se e dramatizam-se a virtualidade e a presença das figuras. Se o virtual é a possibilidade de experiência que se projeta para além dos limites do sensível como a priori, ele renega, por sua gênese temporal, o próprio corpo das palavras em que se soletra o texto do mundo, e aponta, como um gesto de despedida, para aquele território já colonizado no passado pelo fantasma da metafísica e cujas portas se fecham então, para sempre, na imanência de uma imaginação que não mais deixará de se expandir.

O que olha e é visto, resplandecendo incondicionalmente na demiurgia do Eu sem latitudes, revela dois vetores: o pensamento nasce da força centrífuga de sua atividade espontânea, e na crista de sua maré expansiva, encontra uma força centrípeta de choque como reflexão ("Entgegensetzung"); retornando eternamente sobre si, o pensamento engendra-se na reciprocidade de ambos os vetores no território vazio da imaginação livre, como um olhar genético em torno do qual toda Darstellung se exterioriza, lá, no nascedouro das significações, em torno da afasia da coisa em si - zona de sombra e horizonte negativo de toda significação-, desenhando desta forma os contornos da experiência pelo apagamento do sensível e impedindo a projeção destas mesmas significações-miragens no domínio do supra-sensível.

Se as categorias do entendimento kantiano são "vazias" quando se afastam dos objetos da experiência e somente fazem sentido como alfabeto e virtualidade para soletrar o real, sua potência reside justamente em "indicar" o sentido do texto do mundo como um limiar de visibilidade de toda a experiência. Deduzindo até as últimas conseqüências o emprego desta perspectiva inaugurada por Kant, Fichte potencializa, fluidifica e supera pela metástase deste olhar os termos de todo o dualismo no qual esta mesma metafísica se enredara - e ainda insiste em permanecer -, no intervalo entre o que é visto e o que vê, em movimento eterno, pois a luz desta significação pura não vê, mas sim o Espirito que ilumina a Letra.

Este olhar prospectivo, hipótese e limiar de toda discursividade, polariza todo material com a reflexividade que ilumina seu avesso, pois ele é, de fato, a semente de seu epos, ao desafiar a gravidade semântica de um código ainda atrelado à referencialidade residual dos objetos ilusórios da ciência dogmática, justamente por não poder ainda nomear este novo horizonte, do qual é prova a reelaboração exaustiva de A Doutrina da Ciência. Como se esta luminosidade pura calcinasse estes objetos, Deus, Alma e Mundo, sobram-nos apenas as cinzas destas figuras diante das quais insistimos. O olhar que desperta do sono dogmático não se configura na linearidade do discurso, não lhe é anterior ou exterior, mas fulgura entre as unidades discretas deste novo alfabeto, na convergência e superação de forma e conteúdo.

Mas seria necessário também reconhecer um "outro olhar" não menos inquietante, quase enlouquecido, que se desdobra da espiral reflexiva do olho de Urânia, um "momento de verdade, quando, no espelho, surge a imagem do inimigo". Aquilo que "vive no meu viver e olha no meu olhar" introduz nesta dinâmica um princípio de não-identidade que o vigia e monitora em sua pura atividade, procurando extrair do "sangue das imagens" seu corpus absconditum. Sob a superfície da totalidade eletrônica de nosso sistema mundial, este olhar instantâneo revela, enfim, sua invisibilidade tática: tanto o idealismo alemão quanto a guerra pura como a aceleração total dos vetores alimentam-se da mesma hybris no ataque e extermínio do próprio fundamento da realidade através de um pensamento sem objetos. Na virtualização do moderno teatro de guerra, esta qualidade ganha um novo sentido: no olhar-monitor nos bunkers dos Estados-Maiores, a matança sem corpos desenrola-se até a inércia temporal.

 

 

iii - Este parentesco é um dos eixos recorrentes na reflexão de Müller. Adorno observa, por exemplo, em sua Minima Moralia (Gesammelte Schriften, v.4. Suhrkamp, Frankfurt-M, p. 97-98) que sob a sentenciosidade do kantiano Schiller esconde-se aquele moço interiorano e insolente que sempre está pouco à vontade na boa sociedade. O esquematismo não é só notória fraqueza literária, mas mimetiza, em sua pretensão totalizante, uma brutalidade contra o pormenor e, por extensão, contra os mais fracos. Esquemas conceituais de grande latitude tendem à inflexibilidade: o espírito absoluto exigiria o horror absoluto como seu sublime, uma habilidade que, no caso alemão, não se exercitava nas Academias, mas nas cervejarias e seria produto da imitação dos franceses. Não é à toa que o desejo de deduzir o mundo através da linguagem lembraria em Schiller antes a tentativa de usurpar o poder que a resistência a ele. De fato, foi de salteadores que Schiller mais se ocupou. Naquilo que é a sensível cápsula de humanismo, em sua imitação forjada do natural, ruge a alma da besta que sonha transformar o mundo inteiro em prisão. Quanto mais abstratos os esquemas, mais vulneráveis são à crueza sexual. A "pura ação" deste olhar em Fichte, herdeira da constelação do imperativo categórico, anteciparia, em sua fixidez, o estupro transcendental que a o Estado fascista irá impor à Europa, com a rapinagem de tesouros e na destruição (redução ao "essencial") de milhões de corpos sob a égide do desprezo, da eficiência e de um amor aos grandes números. Em Gundling, como já observou o crítico Frank Raddatz em sua dissertação (RADDATZ, Frank-Michael. Dämonen unterm Roten Stern. Zur Geschichtsphilosophie und Ästhetik Heiner Müllers. Sttutgart, Metzler, 1991, p.99) inscreve-se uma "história do corpo na Prússia". Já Florian Vaßen (VASSEN, Florian. Der Tod des Körpers in der Geschichte. In: "Heiner Müller Text + Kritik", München, 1982, p. 45-57) fornecia a Heiner Müller um argumento de valor programático em sua cena tardia: "Ein Kritiker hat in meinen letzten Stücken einen Angriff auf die Geschichte gesehen, auf das lineare Konzept von Geschichte. Er las in ihnen die Rebellion des Körpers gegen Ideen, oder genauer: gegen die Wirkung von Ideen, von der Idee der Geschichte, auf menschliche Körper Das ist in der Tat mein Punkt im Theater. Körper und ihr Konflikt mit Ideen werden auf die Bühne geworfen. Solang es Ideen gibt, gibt es Wunden, Ideen bringen de Körpern Wunden bei". "Um crítico viu em minhas últimas peças um ataque à História, uma crítica à concepção linear de História. Ele lia nelas a rebelião do corpo contra as idéias, ou, mais precisamente, contra o impacto das idéias, notadamente da idéia de história sobre os corpos humanos. É com efeito aquilo a que viso em meu teatro, arremassar sobre a cena corpos em confronto às idéias. Enquanto houver idéias, haverá feridas. As idéias infligem feridas aos corpos" (MÜLLER, Heiner. Gesammelte Irrtümer, Verlag der Autoren, Frankfurt/M, 1991, p. 96-7)