Olhar Armado e Eros
Tecnológico em Heiner Müller
José Galisi Filho
O que empresta ao meu olhar esse vigor,
Que todos os senões lhe parecem pequenos
E as noites se transformam em sóis serenos,
Em vida a negação, em solidez o tremor?
O que a confusa teia do tempo a transpor,
Conduz-me certeiro às fontes perenes
Do belo, do vero, de bondades e acenos,
E lá afunda, e aniquila, do meu empenho a dor?
Já sei. Desde que, no olho de Urânia, acesa
Em quietude, pude eu mesmo interiormente
A clara, fina, pura flama observar;
Desde então, tal visão me habita em profundeza
E é no meu ser - eterna, unicamente;
Vive no meu viver, olhar no meu olhar.
Quando vemos uma pomba voando, estamos longe de simplesmente ver.
Desenhamos no espaço sua trajetória, armamos um espaço tridimensional para servir de
suporte a esse desenho, adivinhamos o movimento das asas, a resistência do ar, e quase
estamos vendo, como se tivéssemos olhar de raios x, o esqueleto da pomba. Ou não seria
essa estrutura profunda algo mais superficial que a própria pomba, que encobre a pomba:
talvez aquele quadro anatômico que vimos numa aula de biologia, no ginásio, e paira
agora como um esquema diante de nós? Ou não seriam outra pombas ainda, que vimos outras
vezes, no céu ou na tela do artista ou do cinema ou simplesmente na retina de nossa
imaginação, atraídas pelo chamariz de um texto literário? Não seriam esses outros
pássaros-fantasma, esquemáticos, vindos de outros textos, que estariam servindo de
chaves de leitura, de códigos para lermos outro texto, que no começo parecia a simples
percepção do vôo de uma pomba?