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  Os sistemas circulatórios de Pedro Cabrita Reis

  [ Maria Luisa Soares de Oliveira ]

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Como é regra na Europa, os edifícios possuem uma utilidade primeira que os habitantes se encarregam de preservar. Por isso, qualquer edifício, enquanto a ruína não o destrói irremediavelmente, mantém esta função primordial, mesmo que o seu destino se altere com os sucessivos proprietários que o ocupam. Um convento guardará sempre na sua arquitectura a função de ligar o terreno ao transcendente, como um palácio servirá para o espectáculo do poder, mesmo quando transformado em museu.

Uma das primeiras instalações de Pedro Cabrita Reis, artista nascido em 1956, foi feita em 1990 para o convento de São Francisco, em Beja. Na altura, o convento de S. Francisco era uma ruína. Tinha uma história que partilhava com muitos outros edifícios pertencentes a ordens religiosas, que no século XIX tinham passado para a propriedade do Estado. De convento, fizera-se quartel militar – lugar difícil para encontrar o transcendente, convenhamos. De quartel, aguardava a intervenção arquitectónica que o transformaria em estabelecimento hoteleiro de luxo, como hoje é.

Como ruína, guardava os sinais da última ocupação, que o tempo ia desvanecendo sem os apagar completamente: números de camaratas pintados por cima das portas das celas, por exemplo, e no meio do claustro o poço, símbolo e imagem da fonte da vida paradisíaca. Um claustro era, nos conventos medievais, a imagem possível do paraíso, destino último do homem, lugar onde a ligação com esse destino podia assumir a forma material. Era também um lugar de passeio, oração e meditação; e o claustro do convento de São Francisco possuía e possui uma dupla arcada em seu redor, que permitia a ligação permanente com o jardim e a fonte, fosse qual fosse o ponto em que o monge se situasse.

Foi neste claustro que Cabrita Reis escolheu intervir. Do poço e para o poço, partiam e chegavam canais feitos de estafe, condutas improváveis de uma qualquer matéria, como a água, mas carregadas de pensamento e de símbolo. Tudo se passava com se, perdidas as ligações que permitiam a união entre crente, jardim, fonte e divino, o artista as substituísse por outras ligações mais secretas, que tinham agora a ver com a memória do lugar e a memória própria. Nesses começos dos anos 90, a obra de Cabrita Reis definia-se pelo estabelecimento de circuitos que tinham, aliás, a ver com o lugar e a memória. Canos, tubagens várias, torneiras que nunca funcionariam e outros materiais apropriados dos universos muito práticos da engenharia ou da arquitectura constituíam a matéria-prima de instalações que tinham sempre a ver, como agora também acontece, com as características próprias do lugar. Sem o poço que já existia no claustro, os circuitos de circulação criados pelo artista teriam um outro significado, como outro seria o significado se as duas arcadas não rodeassem o espaço livre; por isso, a obra foi destruída quando a exposição terminou e só pode ser hoje apreciada por intermédio de fotografias.

Essa criação de novas ligações, contudo, continha em si a condição da sua própria impossibilidade. Apesar de se ligarem ao cilindro de pedra do poço, os canais de circulação de memórias que o artista construíra não conduziam, nem mesmo metaforicamente, à imagem da fonte da vida. É que, no mês de Agosto quente em que a exposição esteve aberta ao público, o poço estava seco. Não podia, por isso, reflectir especularmente a imagem do céu, como qualquer superfície de água o faz – não podia ser a imagem perfeita do conceito, agora já fragmentado por via da sua reflexão no espelho da água, do paraíso cristão. A única ligação possível era às memórias de quem a via, de quem a relacionava com os usos sucessivos do lugar, e enfim às lembranças do próprio artista.[i]

Intitulada Alexandria, a peça de Cabrita Reis em Beja homenageava, por outro lado, a biblioteca primeira, também ela espelho do saber, colecção e repositório de ligações diversas entre o conhecimento. Mas a própria impossibilidade física de estabelecer a ligação com essa fonte de saber – pois que a biblioteca original de Alexandria pereceu – acentuava o sentimento de crise que perpassa ainda hoje na obra do autor[ii].

Essa crise passa pelo desdobramento infindável de imagens e referências que a sua obra convoca[iii], servido sempre por uma multiplicidade de materiais e técnicas que já pouco têm a ver com o trabalho artístico tradicional. Tecidos, feltros, vidros, jarras de água, madeira de construção civil, cartão, vidro, luz, borrachas, cobres participam de um processo de apropriação que põe em jogo, também, a própria personalidade do autor[iv].

A apropriação é, aqui, um dos instrumentos necessários à duplicação, efeito que já era citado em Alexandria e que é necessário à convocação de memórias que o artista realiza em toda a sua obra[v].

Numa outra peça mais recente, Atlas Coelestis III (de 1994), Cabrita Reis encheu uma sala de museu com mesas inclinadas sobre as quais dispôs discos de vidro fosco. Sob a mesa, rolos de papel lembravam antigos mapas (inúteis, já que estavam enrolados); de cada mesa, caíam para o chão mais tubos de borracha que metaforizavam ligações impossíveis, já que nada ligavam.

Esta peça está incluída numa série que leva o mesmo nome, e na qual há outras obras que incluem algumas variantes interessantes. A mais espectacular será porventura o Atlas Coelestis V, uma enorme escadaria tapada por vidros transparentes. Tal como na anterior, o vidro, consoante as condições de observação da obra, reflecte e deixa transparecer o que está acima e abaixo dele. Ou seja, a imagem que produz é um duplo perfeito do que enfrenta o vidro, a que junta também o que está debaixo do mesmo vidro. Como mapa do céu, porque se trata de um atlas, inclui o espectador nesse mesmo céu. Fim de uma ligação[vi]?

Em todo o caso, ao reflectir-se no espelho, é o espectador (tomando o lugar do artista) que se vê a si próprio no mapa do céu. Na entrevista já citada, Pedro Cabrita Reis fala da perda da natureza e comenta: ““[…] nature has disappeared as a reference. We have lost it within ourselves to such a point that we came to the moment where the exercise of architecture is the only form that makes the world comprehensible. After all, architecture is more about defining territories than actually building houses”[vii].

Em Junho de 2003, Pedro Cabrita Reis inaugurou, em Veneza, as obras realizadas para a representação portuguesa à  50ª edição da Bienal de Arte. Esta participação acentuou a internacionalização de uma carreira artística construída de modo exemplar a partir de Portugal, e que teve como outros pontos significativos as exposições antológicas no Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (Lisboa, 1994) e no Museu de Serralves (Porto, 1999) e a participação na Documenta IX (Cassel, Alemanha, 1992), para além de muitas outras exposições individuais e colectivas em Portugal e no estrangeiro.

As peças realizadas para a edição da Bienal de Veneza condensam, formal e conceptualmente, as linhas de trabalho que o artista tem desenvolvido desde os anos 80. Aqui, Cabrita Reis utilizou dois espaços distintos, para os quais construiu pavilhões de diferentes sentidos. Nos Giardini, Absent Names é uma casa cega, sem janelas, no interior da qual se dispõem dezenas de tubos de luz. No interior, há também um ruído contínuo, provocado pelos aparelhos de ar condicionado que baixam a temperatura ambiente para um nível suportável.

O título da peça traduz uma impossibilidade, já que um nome só existe quando pronunciado. E, porque é uma impossibilidade, é também a uma ligação/desligação terminada que ele se refere. O nomear[viii] é talvez uma das primeiras duplicações tratadas pelo mito; nesta peça, o espectador é introduzido num espaço de ruído e intensa luz, ao ponto de ter dificuldade em permanecer de olhos abertos. Cabrita Reis chama-lhe um lugar de inferno[ix]. Talvez, como em nenhuma outra obra, sejam convocados e expostos os limites do corpo de quem vê.

Longer Journeys a segunda peça realizada para os Antichi Granai – uma antiga zona industrial de Veneza, na Giudecca –o artista construiu uma espécie de casa, um enorme corredor com aberturas várias, sobre um suporte de estacas. A casa permanece inacessível, já que não existe escada nem rampa que permita o acesso ao piso principal. O espectador só pode mover-se no espaço das fundações dessa casa, que possui paralelismos evidentes com a estrutura dos edifícios venezianos, todos eles construídos sobre estacas sobre um terreno lodoso.

Como noutros casos da obra deste artista, trata-se de uma construção, de um organizar de um espaço no meio da malha urbana da cidade. Através de uma duplicação de conceitos, o artista obtém um paralelismo, resultado sempre presente também no seu trabalho. Mas não é tudo. A medida da inacessibilidade da casa, como da visão de Absent Names, é ainda o corpo do espectador – e é por isso que, apesar da sua diversidade formal, se pode também dizer que toda a obra de Cabrita Reis é uma obra sobre o corpo e sobre os seus sentidos, no significado mais fisiológico da palavra.

Resta por isso, a esta obra, uma espécie de resíduo, de liberdade de interpretação que é dada por esse espectador. Os desenhos do artista, que este ensaio não comenta, são, na sua vertente mais mediatizada, auto-retratos de olhos fechados. Porque há uma espécie de oferta do corpo do artista que se faz em toda a obra, e que pede a oferta simétrica do corpo do espectador.



[i] Numa entrevista dada a Adrian Searle, in “A conversation with Pedro Cabrita Reis” in Pedro Cabrita Reis, Ostfildern-Ruit (Alemanha), Hatje Cantz Verlag, 2003, p. 67, o artista diz: “Take the round and square wells connected by as system of channels, for example. I guess you can say that everything I have done is about territory. It is all houses and how they define a geography of the territory. It is all about constructing, and how to perceive a place of its own, thru the act of measuring. A palm of a hand or a look at the horizon, either both defines the same place or draws the same boundary. […].[I grew up] in an old and rather sad residential part of town. The apartment was a corridor, with rooms to each side, like a system of cells clustered around a main vein”.

 

[ii] Cf. http://www.interact.com.pt/interact8/ensaio/ensaio3.html, um ensaio de Paul Valéry sobre a crise em que o autor fala justamente sobre a ruína das civilizações e do saber modernos.

[iii] Acentuado pelo facto de o artista trabalhar por meio de séries, ou seja, de se servir de um mecanismo de repetição entrópica que, mesmo não reproduzindo um mesmo, destaca o carácter fragmentário de cada obra, que deve sempre ser completada com as outras que pertencem à mesma série.

[iv] “From the hermeneutic (romantic) perspective, the reader is always far better equiped than the author. (Only thus are we able to understand that later on the author is absent – or dies, etc.). What happens here is completely different. The author, the subject of the conception, of the constitutive action, build-up and producing the piece of work  is the giving… […]. Not the Duchampian life constructed as a work of art anymore, but – more radically – he person becoming part of the work of art. Better still, as we shall see: the person as a species of the gender, which is the work of art.” (JUSTO, José Miranda, “Vocabulary exercise for a discourse on method” in Op. cit., p. 128).

[v] José Miranda Justo, no texto citado, acentua os conceitos de duplicação e paralelismo na obra de Pedro Cabrita Reis, sem contudo os referir ao efeito especular que ela prentende obter.

[vi] Ou começo de uma outra, já que a superfície horizontal espelhada na qual se reflecte um espectador lembra o mito de Narciso. Este é também referido por Miranda Justo no texto citado.

[vii] P. 67.

[viii] Já que, no livro do Génesis, a primeira tarefa confiada ao homem é a de nomear os seres vivos.

[ix] Em conversa pessoal connosco.