>> O caso
Hipótese de trabalho: para além do plug and play
Sinopse
O método
A estória Laney-Idoru
>> Perplexidades e interrogações
Ciberespaço e Interacção
“Ela não é carne, é informação”
Sobre agentes artificiais e agentes de software
Os olhos são o espelho da alma

  Idoru = agregado de desejo subjectivo. Notas a propósito de um caso de 
  ciberconexão. 

  [ Graça Rocha Simões ]

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“ Ela não é carne, é informação.”

                                              

                                               William Gibson in Idoru

“En résumé, l´individualité du corps est celle de la flamme, plus que celle de la pierre, de la forme plus que celle d´un fragment matériel. Cette forme peut être transmise, ou  modifiée, ou doublé … »    

                                               Norbert Wiener in Cybernétique et Société

“Decididamente, aquilo não era obra de um amador.......Tratava-se, sem sombra de dúvida, de uma peça de escultura perfeita, liberta da condição de madeira e que transmitia uma vitalidade cruel, feroz, quase sexual.

E, contudo, havia algo que não saíra bem. Algo que não batia certo, algo exagerado, ou demasiado acabado ou não suficientemente acabado. O quê, exactamente, isso Yoel não conseguia descobrir. Os olhos ardiam-lhe. Voltou a acalentar a suspeita de que aquilo era obra de um amador. Mas, onde estava o defeito ?”

                                               Amos Oz in Conhecer uma Mulher

                       

1. Hipótese de trabalho: para além do plug and play

Muitas vezes, no ciberespaço  o que se passa entre pessoas, ou o que se passa entre pessoas e outras estruturas informacionais,  “tipo documento” ou “tipo sistema”, nomeadamente quando complexas,  parece ter uma natureza muito para além do plano do que se caracteriza de  interacção. O termo conexão sugere o estabelecimento de um vínculo entre agentes em presença que os termos interacção,  ou mesmo contacto ou ligação, não recobrem. Na noção conexão ressoa a ideia de uma relação  forte,  de um acoplamento, de engate, de  imbricação, de união. Com certeza de algo que se relaciona com uma condição, nem sequer necessária mas seguramente imaginária, de  ligação física, de difícil ou até impossível desligação afectiva. Uma conexão comportará igualmente um traço de fusão ou simbiose e, num sentido extremo, às vezes até também de compulsão, de adição. 

Mesmo que esta ideia de conexão se situe estritamente e  apenas no plano da emoção, o argumento é que, mesmo se apenas como metáfora,  iluminará os  contornos de configuração de  algumas relações comunicacionais. Ocorrendo no ciberespaço, falar-se-á  então de ciberconexão.

Sendo assim, serão exemplos de ciberconexão os casos da relação que por vezes se estabelece entre hackers e sistemas computacionais e de que Sherry Turkle nos deu preciosas descrições e interpretações,  o que num dado MUD se passa  entre Júlia e  alguns dos outros jogadores, tal como rapidamente reportado noutra parte deste texto ou, ainda no universo dos MUD, a célebre violação perpetuada por Mr. Bungle. Dir-se-á que se trata de casos extremos, e são. Mas quantas vezes não nos sentimos pendurados, agarrados, apegados ao correio electrónico à espera que aquela pessoa nos contacte, ao personagem XPTO de um grupo de conversa, à imensa prolixidade de dados que um motor de busca nos facultará, à navegação à vista na WWW, à participação num blog,  ao vislumbre de uma hipótese  que uma infinidade de cruzamentos aleatórios de dados possa dar, ao noticiário de Ananova, à própria Ananova...Enfim, ciberconectados.  E como estes exemplos são suaves....

No processo de maturação e formatação desta hipótese de trabalho, processo ainda em curso,  lembrei-me de Idoru, um romance cyberpunk de William Gibson lido já há alguns anos [1]. Voltei ao romance e o caso  de ciberconexão lá está. A estória  de Laney e Idoru será aqui como tal  considerada, e a partir dele iniciarei o teste da potencialidade desta noção, se não explicativa, pelo menos evocativa de dimensões reflexivas futuras  que ajudem a entender, resolver  e dissolver a perturbação de Laney: o que é “isto” que me está a acontecer ?  Como é que ”isto” me está a acontecer se “isto” não é senão um  agregado de informação ?

Eu sou Laney.

2. Sinopse

O cenário é uma mistura de ciberespaço e de uma Tóquio nanotecnologicamente reconstruída após um violento terramoto, na qual os edifícios parecem mudar de forma à medida que se olha para eles. Os dois espaços não se confundem porém, submergindo as personagens ou num ou noutro sem que aparentemente se sintam confundidas ou não situadas.

As personagens são:

Laney –ser humano, especialista em análise de dados

Rei Toei – agente artificial, cantora

Retz – ser humano, estrela rock

O criador – ser humano (Kuwayama)

O designer – ser humano (Yamazaki) 

Rez é membro de uma banda de música rock. Um sucesso mundial. A sua vida é acompanhada pela Internet por milhares de clubes de fans espalhados por todo o planeta :  o que veste, o que come, o que diz, com quem namora... todos os pormenores interessam.  Rez é, enfim, uma estrela rock convencional. Está apaixonado e quer casar com Rei Toei, uma cantora japonesa, uma idoru. Rei Toei é bela, misteriosa, e totalmente artificial. E toda a gente o sabe, ela não é senão um holograma.

Laney, um especialista em emaranhados de dados, é  um “caçador intuitivo de padrões de informação: da espécie de assinatura que qualquer um inadvertidamente cria na Net”. É, intuitivamente, “um navegador nato, saltando de programa em programa, da base de dados para base de dados, de plataforma para plataforma”. Uma espécie de vedor, “um feiticeiro da água cibernético” que passa o tempo a “percorrer vastos glaciares de dados indiferenciados.”

“-Mas eles têm mesmo cantoras que não existem?

-As cantoras-ídolos – disse ele...As idorus. Algumas são extremamente        populares.

 - Mas há pessoas a matarem-se por causa delas?

 - Não sei. É possível, suponho.

 - Há pessoas que se casam com elas?

 - Que eu saiba, não.

 - E a Rei Toei?

- Lamento, mas não a conheço....” 

Laney não conhecia pessoalmente Rei Toei, contudo sabia da existência de idorus. Uma idoru, uma <<cantora-ídolo>>, é uma “personalidade-constructo, uma combinação de agentes de software, uma criação de designers da informação”.

Mas  Laney vai conhecer Rei Toei. Tanto os fans quanto os agentes de Rez não estão satisfeitos com a perspectiva deste casamento. Ninguém compreende o que se passa.  Afinal, ele vai casar com uma miúda japonesa que não existe! “E ele sabe, mas diz que nós não temos imaginação.” Assim, Laney é contratado pela empresa que gere a carreira de Rez para ... ajudar a compreender e explicar.

E, claro, como em qualquer romance série B, Laney vê-se envolvido numa relação sedutoramente perigosa. “Ele olhou para os olhos dela. Que espécie de potência de computação seria necessária para criar uma coisa assim, uma coisa que nos retribuía o olhar ?”

3. O método

Sobre fragmentos do romance, escolha pessoalíssima, construí e conto  o “caso” Laney-Idoru.  À margem, sinalizam-se  definições possíveis para alguns dos conceitos a articular e/ou em articulação e assinalam-se  perplexidades e interrogações [T2], diria até perturbações, como se do caso, enquanto datum, se partisse para a reflexão.  A realidade é precisamente a inversa, foi  a reflexão em torno da nossa relação e interacção com outras estruturas informacionais e respectivo design  (tanto da informação quanto da própria interacção) que fez emergir e desenhar este “caso” de ciberconexão[2].

4. A estória  Laney-Idoru

“Se a tivesse imaginado, seria como uma espécie de síntese industrial das últimas três dúzias de caras mais famosas dos media japoneses. Em Hollywood era normalmente assim e a fórmula tendia a ser ainda mais rígida no caso dos agentes computorizados – eigenheads, as suas feições derivavam algoritmicamente de características humanas de popularidade comprovada.

Ela não era nada disso.

E agora os olhos dela encontravam-se com os dele.

Laney julgou transpor uma fronteira. Ali, na estrutura da cara dela, na geometria interior das suas feições, jaziam histórias cifradas de fugas dinásticas, privações, terríveis migrações. Viu túmulos de pedra em íngremes prados alpinos, as lápides debruadas de neve. Uma fileira de póneis carregados, o bafo branco do frio, seguindo por um trilho sobre um desfiladeiro. Ao fundo, as curvas do rio eram distantes pinceladas de prata. Campainhas de ferro nos arreios ressoavam no crepúsculo azul.

Laney estremeceu. Na boca tinha um gosto a metal corroído.

Os olhos da idoru, arautos de um país imaginário, encontraram os dele.

.....e a idoru sorriu, iluminada do interior...

....Um holograma. Algo gerado, animado, projectado. Sentiu o aperto relaxar um pouco

nas bordas da almofada.

Mas então lembrou-se dos túmulos de pedra, do rio, dos póneis com as campainhas de ferro.

Nodal.

Não olhava para a cara de idoru. Ela não é carne, é informação. Ela é a ponta de um iceberg, não, uma Antárctida de informação. Olhar para a cara dela iria despoletar aquilo outra vez; ela era um volume impensável de informação. Induzia a visão nodal de uma forma sem precedentes; induzia-a sob a forma de narrativa. 

(Kuwayama esclarece que Idoru é ) 

- O resultado de uma profusão de constructos elaborados, a que nos referimos como <<máquinas de desejo>>....Não num sentido literal...antes imagine por favor, agregados de desejo subjectivo. Foi decidido que o espectro modular constituiria idealmente uma arquitectura de desejo articulado.

                        (E ainda )

- A única realidade da Rei é o universo da contínua criação em série – disse Rez- Toda ela é processo; infinitamente mais do que a soma combinada das suas várias identidades. As plataformas desaparecem sob si própria, uma após a outra, à medida que se vai tornando mais densa e complexa.

 

(Agora no ciberespaço )

- Você foi nosso convidado esta noite –disse ela.- Não pude conversar consigo. Peço desculpa.

Ele olhou-a, esperando pelos vales de montanhas e pelas campainhas, mas ela limitou-se a retribuir-lhe o olhar, não lhe chegou mais nada, e lembrou-se do que Yamazaki dissera sobre a largura de banda.

Uma facada de dor na ilharga.

- E o que foi que viu que fez com que não conseguisse olhar para mim durante o jantar?

- Neve – disse Laney, e ficou surpreendido por sentir que estava a começar a corar. Montanhas...mas julgo que era apenas um vídeo que fez.

-         Não <<fazemos>> os vídeos da Rei – disse Kuwayama -, não no sentido habitual. Eles surgem directamente da sua experiência contínua no mundo. São os sonhos dela, se quiser.

- Você também sonha, não sonha, Sr. Laney? – disse a Idoru. É esse o seu talento. Yamazaki diz que é como ver rostos nas nuvens, só que os rostos estão mesmo lá. Não consigo ver os rostos nas nuvens, mas Kuwayama-san diz-me que um dia conseguirei.

Mas Laney sabia agora que a idoru era mais complexa, mais poderosa do que qualquer sintespiano de Hollywood. Especialmente se Kuwayama estivesse a dizer a verdade sobre aquilo de os vídeos serem os <<sonhos>> dela. 

Laney cerrou os olhos, mas a imagem persistiu.

Abriu-os perante a idoru, uma orla de peles à volta das suas feições. Estava a olhar para ele. ....Mas depois a imagem perdeu definição, confundindo-se com as texturas que corriam pelos recifes de dados, e ele deixou-se ir, deixou-se ir com aquilo, e sentiu-se passar pelo seu centro, exactamente pelo meio do seu ponto crucial, e sair pelo outro lado... 

... Os dados da idoru começavam algures depois daquilo, mas começavam como algo com uma forma regular, deliberada, mas a que faltava complexidade. Mas nos pontos em que se aproximava mais dos dados de Rez, viu que tinham começado a adquirir uma espécie de complexidade. Ou um aspecto mais caótico, pensou. O lado humano. É assim que ela aprende.

(Epílogo)

Encontrava-se ao lado de idoru na praia. Não conseguia sentir aquele vento, mas podia ouvi-lo, tão intenso agora que tinha dificuldade em ouvi-la a ela. – Consegue vê-los? – gritou ela.

- Ver o quê?

- Os rostos nas nuvens! Os pontos nodais! Eu não vejo nada! Tem de mos mostrar! E desapareceu, o mar com ela, Laney de novo a olhar para os dados, para onde as histórias digitalizadas de Rez e Rei Toei se misturavam, na iminência de uma outra coisa.”

Perplexidades e interrogações 
Ciberespaço e Interacção 
As nossas atitudes em relação ao ciberespaço vão-se alterando à medida da evolução do próprio ciberespaço, em particular à medida que as tecnologias de acesso e utilização do ciberespaço se desenvolvem e se banalizam. O mesmo podemos dizer das definições de ciberespaço, de que se reterá a de Floridi “totalidade de documentos, serviços e recursos que constituem um espaço conceptual e semântico”[3]

Neste contexto, como noutros, a definição de interacção de Goffman continua a ser paradigmática [4]. Assim, a interacção pode ser definida como o processo de influência recíproca de indivíduos ou agentes em presença sobre as acções uns dos outros, processo que se desenvolve numa sucessão contínua de acontecimentos interligados e ligados a uma estrutura espacio-temporal. 
Para a interacção cibermediada, ou interacção no ciberespaço, parece ser determinante a qualidade interactiva dos sucessivos encontros digitais
Têm sido inúmeras as propostas de definição de interactividade. Seguindo a síntese de Sally McMillan, ora considerando-a como uma característica de indíviduos, agentes ou sistemas ( ou media), ora tomando-a como uma percepção que os indivíduos têm de outros indíviduos, agentes ou sistemas (ou media,), ou ainda como uma expressão da extensão e intensidade de trocas de mensagens na sua relação com trocas anteriores, ou finalmente como sendo um constructo multi-dimensional no qual as dimensões comunicação, controlo e tempo são fulcrais [5].
Por interactividade considerar-se-á uma qualidade dos agentes em presença num processo de interacção e que se exprime numa efectiva, simulada ou percepcionada capacidade de reacção e/ou resposta, verbal ou não, assim como numa demonstração visível para o outro da alteração de estado ou comportamento, efectivo ou simulado, provocados pela sua reacção/resposta. A interactividade está assim relacionada com a capacidade expressiva de um indivíduo, agente ou sistema, cujo paradigma é o modo conversacional.
O grau ou graduação de expressão e/ou exercício da interactividade de cada um dos indivíduos, agentes ou sistemas em interacção, bem como o entrosamento entre ambos (como quando um actor pega na deixa de outro) marcarão as características do processo de interacção. De tal maneira que se tende a falar de processos interactivos. Pod-se afirmar que em menor ou menor grau a interactividade é condição necessária para a interacção, mas não é suficiente. Pode-se até considerar que a interactividade designa o grau de interacção entre indivíduos [6], mas importa não confundir os dois conceitos, e mesmo nos trabalhos de McMillan nem sempre essa distinção prevalece. 

Sally McMillan classifica a interacção em três tipos básicos, tendo como importantíssimo elemento distintivo a entidade, o “outro”, que nós, seres humanos, encontramos e com quem interagimos : a) a interacção humano-humano, b) a interacção humano-documento e c) a interacção humano-sistema. 
Vejamos alguns exemplos. No primeiro grande grupo poder-se-ão incluir as situações interaccionais mediadas por correio electrónico e grupos de conversa, por exemplo. No segundo grande grupo, falar-se-á de interacção com documentos hipertextuais na World Wide Web e para o terceiro grupo, na realidade situações de interacção com o próprio computador, ou com um sistema computacional lato senso, mencionar-se-ão os casos de interacção no contexto dos jogos electrónicos, motores de busca ou software educativo[7].

A grande virtualidade desta simples categorização é justamente possibilitar organizar a míriade de situações de interacção digital em que estamos cada vez mais envolvidos, reconhecendo para cada tipo puro ou grosseiro naturezas, contextos, dinâmicas, razões, valores, atributos técnicos e princípios de desenho da interacção distintos ajudando a evitar análises tantas vezes confusas. Um exemplo típico de confusão são precisamente algumas das reflexões em torno da ideia de interactividade, como se de um conceito unívoco se tratasse. A interactividade configura-se definitivamente de forma diferente em situações de natureza intrinsecamente diversas com propriedades, requisitos e graduações necessariamente diversos e que esta tipificação ajuda a esclarecer. 

Uma reflexão sobre tipos mistos e até sobre metamorfoses de tipos ganhará igualmente em clareza ao ter por referência e ponto de partida este quadro de diferenciação no qual o “outro” é, como referimos acima, elemento de distinção decisivo. As situações que mais mobilizam de momento a minha atenção são precisamente aquelas em que o estatuto, a natureza, o quid do “outro” se altera para nós durante a interacção. Ou porque se apresenta, nos é apresentado ou é percepcionado como um “igual”, ou precisamente porque à partida é “diferente” e depois se aproxima ou revela como igual. 

Citemos alguns destes casos interaccionais camaleónicos e de ciberconexão.
Um deles é o tão estudado por Turkle relativamente à lógica e dinâmica da interacção entre hackers e computador. Claramente uma situação do terceiro tipo para avaliações externas, redunda muitas vezes na interacção situada [8] em percepções e práticas interaccionais humano-humano[9]
Tanto o caso da interacção com Mr. Bungle, exemplo extremado e desviante de dinâmica interaccional apoiada em simulações de identidade nas interacções humano-humano [10], como o caso da interacção com Júlia são igualmente de citar. Vejamos aqui alguns traços do caso interaccional com Júlia. Ela é um dos membros de um MUD, e os jogadores interagem com ela como se ela fosse um qualquer outro jogador. No entanto, Júlia é um agente de software, um jogador não humano não imediatamente reconhecido como tal. É interessante verificar que mesmo quando “descoberto” alguns jogadores humanos continuam a interagir com ela como se o fosse, ou então adoptam a estratégia de parecer que o fazem para a apanhar na sua natureza artificial – exercício de controle [11].Afinal, mais uma versão do célebre teste de Turing. 

Idoru é, tal como Júlia, um agente de software. Complexo, inteligente, autónomo, dialogante, capaz de errar, hesitante, subtil. Mais aperfeiçoado, porém. A distância entre ambos é a da ficção científica. É ainda a da ficção. 
A interacção Laney - Idoru poderá, e deverá, ser classificada num primeiro momento como uma interacção do terceiro tipo, humano-sistema. Tudo se complica quando num segundo momento, precisamente na e pela interacção esta se revela afinal do tipo humano-humano. Na interacção, Idoru parece metamorfosear-se reconhecendo-se nela progressivamente uma humanidade próxima da do ser humano.... É essa a perplexidade de Laney. Como é que é possível ? É apenas um exemplo da mestria de designers da informação e da interacção, e cujo principal instrumento tem sido a interactividade ? Não, não pode ser. Como é que “ela” faz para ser assim ? Como é que sabendo ele que Idoru é um sistema total e absolutamente artificial se emociona ? Porque é que se emociona ? 

“Ela não é carne, é informação”

Sabemos que quando Norbert Wiener nos propunha admitirmos a ideia da possibilidade de transportar telegraficamente um ser humano, tinha por intenção acentuar que, do seu ponto de vista, o essencial na comunicação é a transmissão de mensagens. Detenhamo-nos, no entanto, e precisamente, na ideia de transporte telegráfico de um organismo vivo. Na época “a impossibilidade de telegrafar, de um lugar a outro, o modelo de um ser humano é devida provavelmente a obstáculos técnicos, em particular pela dificuldade em manter vivo um organismo após uma reconstituição tão completa. ....Quanto ao problema da reconstrução total de um organismo vivo, temos dificuldade em imaginar uma mais radical do que a que sofre a borboleta no decurso da sua metamorfose.”[12] 

Mesmo não pretendendo, como diz o próprio Wiener, fazer antecipação científica se, por um lado, a sua argumentação em torno da plausibilidade teórica desta ideia não escapa a uma ressonância de ficção científica (pensemos nos filmes A Mosca, ou Exterminador), por outro lado, nela encontramos alguns dos traços mais marcantes do programa investigativo da Inteligência Artificial (IA) do primeiro período (GOFAI – Good Old Artificial Intelligence). Esses traços são, por exemplo a ideia de representação/reconstituição/reconstrução de um modelo informacional de ser humano, ou de um processo ou função próprios de um ser humano, ou ser vivo, a que poderemos chamar agente na acepção de Minsky Marvin [13] , e a de mobilidade e autonomia de padrões informacionais. 
Actualmente, a conjugação de esforços da IA do segundo período (LAI – Ligth Artificial Intelligence) e do domínio que acima chamámos desenho da interacção[14] permitiu já concretizar no espaço virtual/digital alguns exemplos de agentes, agentes artificiais, com os quais nos confrontamos e interagimos, sejam webbots ou VIPs (Virtual Invented People). 

Sobre agentes artificiais e agentes de software
Um webbot é uma espécie particular de agente artificial, nomeadamente um agente de software ou seja um programa de computador que é executado enquanto circula pelo ciberpespaço. Parece ser consensual que as qualidades básicas dos webbots são a sua mobilidade, autonomia e inteligência “suficiente”. Tanto Floridi[15] como Horberg [16], para citar alguns exemplos de tradições de investigação diferentes, o referem. Os webbots movem-se literalmente numa rede digital e podem copiar-se para outros computadores para desempenharem a sua função ou trabalho. São entidades autónomas na medida em que podem trabalhar por conta própria e tomar decisões para os seus donos. Por último, são suficientemente inteligentes para nos observarem e aprenderem os nossos hábitos e preferências. 

Situemos estes agentes de software no seio dos outros agentes artificiais. Seguir-se-á a tipologia de Luciano Floridi, com uma alteração para o quarto tipo que já de seguida se justificará[17]
Os agentes artificiais podem ser classificados em quatro famílias 1) andróides, 2) ciborgues, 3) robôs e 4) agentes de software. 
Os andróides são compostos exclusivamente de substâncias orgânicas. Sendo produto da engenharia biogenética e procurando imitar totalmente o ser humano, os únicos exemplos conhecidos são ficcionais como, por exemplo, Frankenstein e os replicantes de Blade Runner. 
Os ciborgues são uma mistura de componentes humanas e componentes mecânicas. Existem ou não ? Para Floridi só de uma forma muito genérica se pode considerar que um número cada vez maior de pessoas são ciborgues. Já para Donna Haraway, como sabemos, todos o somos de alguma forma[18]
Os robôs, compostos por software e partes mecânicas, unanimanente considerados uma realidade, podem ser definidos como máquinas automáticas programadas para executarem tarefas manuais que requeririam alguma inteligência se executadas por seres humanos e capazes de interagir com algum sucesso com o meio onde actuam ( o que os distinguirá de uma máquina de lavar louça, por exemplo). Uma das características essenciais dos robôs é que para operarem com sucesso o meio onde funcionam tem de ser profundamente alterado e adaptado. Floridi chama ao processo de adaptação do meio ao agente artificial, tendo em vista melhorar as capacidades deste, ontological enveloping, que traduziremos por envolvimento, protecção ou adaptação ontológicos. Por isso, os robôs só funcionam bem em ambientes muito específicos e em tarefas muito particulares sendo necessário para que um dia possamos dispor destas ferramentas quotidianamente em nossa casa efectuar profundas modificações no nosso ambiente doméstico.
Para Floridi, o quarto tipo de agente artificial são os webbots. Totalmente digitais e, portanto, “sem corpo”, os webbots são basicamente “robôs” que operam num ambiente totalmente adaptado a si próprios – o ciberespaço. Esta diferenciação em relação aos robôs é estabelecida em torno, sobretudo, do meio onde cada tipo de agente “vive”. Tratando-se de uma distinção particularmente pertinente, e a ela se voltará, é no entanto restritiva. Por um lado, deixa de fora alguns agentes de software emergentes, como é o caso dos VIP. A menos que a um VIP não se reconheça o carácter de agente, e apenas o de actor ou personagem digital. Por outro lado, e mesmo tendo em conta que a “carne” do “corpo” dos agentes artificiais é uma das características distintivas na arquitectura de toda esta classificação, arrumar no quarto tipo de agentes artificiais apenas agentes de software “sem corpo”, como se definitivamente um corpo digital fosse um não-corpo, é uma formalização demasiado rápida. 
Assim, no quarto tipo de agentes artificiais, agentes de software, incluirei não só webbots como outros tipos de agentes de software em vias de concretização tecnológica - VIPs, como ainda agentes de software “com corpo”, mesmo que os exemplos conhecidos sejam apenas os da ficção. É o caso de Idoru cuja “carne” do “corpo” é luz [19]

Se os desenvolvimentos tecnológicos recentes e em curso deram já existência a alguns agentes de software, nomeadamente os webbots, e tudo indica que estes serão cada vez em maior número e desempenhando funções cada vez mais diversificadas e numa pluralidade de sectores de actividade, outros pululam há algum tempo apenas na ficção científica. Em Neuromancer, por exemplo, com o incansável mas falível Dixie, ou Colin em Mona Lisa Overdrive cuja dona ele ajuda e protege, ou ainda com o nosso caso Idoru [1]
Uma das principais particularidades de Colin é que a dona não tem de entrar no ciberespaço para interagir com ele: Colin aparece no mundo real como uma espécie de holograma e eles falam entre si, sendo neste ponto, mas não só, uma antecipação de Idoru. Em relação a Dixie, não é no entanto este o único melhoramento. Colin tem não só uma personalidade humana mais desenvolvida, como uma capacidade de memória muito superior. Mas já em relação a Idoru, Colin é apenas uma sombra, um protótipo. Dixie, Colin e Idoru são assim etapas de um processo de concretização técnica, tal como descrito por Simondon [20], cada uma delas desafiando e surpreendendo o agente/actor/espectador ser humano. 

É importante acentuar a característica de mobilidade de Colin e Idoru: eles podem interagir connosco fora daquele ciberespaço a que actualmente só acedemos via ecrã. Tanto Colin como a Idoru, não estão mais aprisionados no envelope ontológico do ciberespaço a que se refere Floridi, tornando viáveis encontros que só o acesso humano ao ciberespaço possibilitava. Com este tipo de agente, não somos só nós que temos de plug in no ciberespaço ou plug out para dele sair. Brincando com as palavras, o agente faz plug in no espaço real, ele é literalmente teletransportado para a nossa realidade física. Só possível na ficção, mas já Wiener nos alertava para o facto de a impossibilidade tecnológica não dever ser obstáculo à reflexão...e à imaginação.

Mas estes movimentos, esta mobilidade entre espaços conceptuais e semânticos diversos, só por si não bastam para atribuir ao “outro” um outro estatuto para além do webbot ou VIP. A autonomia e a inteligência q.b. também não. A adaptação e a interacção com o meio, a interactividade e a sociabilidade também não. E Idoru é neste aspecto paradigmática. Idoru tem presença, marca presença [21]

Os olhos são o espelho da alma
Laney sabe que Idoru é um agente artificial. Todos sabem! E na interacção com Idoru quase nunca sucede ser possível esquecer a mediação técnica que a torna presente. Laney sente-o claramente quando o aparelhamento técnico, “seja ele qual for”, não fornece as condições ideais à sua projecção. Porque Idoru, sendo um holograma, é projectada entre nós, no meio de nós. Mesmo quando se encontram no ciberespaço, nem sempre a largura de banda permite que a experiência interaccional seja natural, imediata, directa, real. E no entanto, alguma coisa passa entre ambos, alguma coisa se passa, como um face-a-face, sem mediação, uma intimidade que o contacto do olhar induz: ciberconexão. O que diz o olhar de Idoru a Laney toca-o no mais fundo de si e é inexplicável: ciberconexão. Há uma cumplicidade entre ambos: ciberconexão. Sob os dados de Idoru há uma subjectividade latente, permanente, presente e os seus olhos exprimem isso. Se os dados são bits, como digitalizar, transportar, reconstruir o subjectivo? O desejo, o sonho ? Como é isso possível? 

Não, não é apenas uma criação de designers. Laney encontra uma resposta no turbilhão do ciberespaço, lá onde os dados de Idoru e Rez se encontram, onde eles se casam: Idoru aprende com os dados de Rez, humano, o seu lado humano. 

Mas esta resposta não chega. Por isso, Laney precisa ainda do olhar de Idoru: ciberconexão.

Referências

[1] Gibson, William (1996). Idoru. Penguin Books:London. 
Tradução portuguesa publicada pela Gradiva em 1998.
Existem muitas referências na Net a Idoru, nomeadamente no contexto dos estudos em ciberficção e cibercultura. Os estudos de género têm igualmente sido interpelados por esta construção de mulher, a par de Lara Croft ou Ananova, por exemplo. 
Duas referências da Net apenas, duas entrevistas a Willliam Gibson. Uma especificamente a propósito deste romance What was the kernel of “Idoru”? What did you statr with? http://www.salon.com/weekkly/gibson3961014.html ; e outra anterior, An Interview with William Gibson http://project.cyberpunk.ru/idb/gibson_interview.html .

Neuromancer é a obra mais conhecida de Gibson. Publicada em 1984 pela Penguim Books foi igualmente editada pela Gradiva. William Gibson escreveu entre outros romances ainda Mona Lisa Overdrive. Bantan:NY.1989. 
Os agentes de software referidos no texto, Dixie e Colin, fazem parte respectivamente de cada um destas obras. 

[2] As citações do romance Idoru referem-se à edição da Gradiva. A epígrafe consta da p.137. Outras citações são retiradas das pp. 27, 30, 36, 40, 45, 62-63, 74-76 e a composição da estória foi feita a partir de extractos das pp. : 135-138; 147; 155; 170-171; 177; 184. 
Para a versão inglesa, as páginas utilizadas foram: 

[3] Floridi, Luciano (1999). philosophy and computing. London: Routledge, p. 63.

[4] Goffman, Erwing (1993). A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias. Relógio d´Água:Lisboa. 

[5] Ver em particular Exploring models of interactivity from multiple research traditions: users, documents, and systems. In L.Lievrouw and S. Livingstone (Eds.), Handbook of New Media: Social Shaping and Social Consequences (pp.163-182). London: Sage, 2002. Este trabalho está igualmente disponível em http://web.utk.edu/~sjmcmill/Research/interactivity2.doc
Ver também o artigo McMillan, Sally and Hwang, Jang-Sun (2002). Measures of Perceived Interactivity: An Exploration of the Role of Direction of Communication, User Control, and Time in Shaping Perceptions of Interactivity. http://web.utk.edu/~sjmcmill/Research/

[6] Simões, Graça R.(1996). A Interacção Homem-Computador- Práticas informatizadas de investigadores em Ciências Sociais e Humanas. Dissertação de Doutoramento policopiada. UNL, pp.48-52.

[7] Livingstone, Sonia (2002). Young People and New Media, London: Sage, pp. 212.

[8] Suchman, Lucy A. (1987). Plans and Situated Actions – The problem of human/machine communication. Cambridge University Press:NY.

[9] Turkle, Sherry (1989). O Segundo Eu – Os Computadores e o Espírito Humano. Presença:Lisboa.

Turkle, Sherry (1995). A Vida no Ecrã – A Identidade na Era da Internet. Relógio d´Água:Lisboa. 

Em entrevista do New York Times de 1998, publicada on line, e a propósito de um livro que está a preparar, Turkle refere os estudos que está a desenvolver sobre a relação das pessoas com objectos computacionais. Um dos aspectos em estudo relaciona-se com a forma como os estes objectos estão investidos de emoções. http://web.mit.edu/sturkle/wwwnytimes.html

[10] Dibbell, Julien (1993). A Rape in Cyberspace or How an evil crown, a haitian trickster spirit, two wizards and a cast of dozens turned a database into a society. http://ftp.game.org/pub/mud/text/research/villgevoice.com

MacKinnon , Richard (1993). Virtual Rape. http://ascusc.org/jcmc/vol2/issue4/mackinnon.html


[11] Foner, Leonard N.(1995). Entertaining Agents: A Sociological Study. http://foner.www.media.mit.edu/people/foner/Reports/IJCAI-95/julia.txt 



[12] o itálico é nosso. Ver em particular o capítulo Organisme et Message. Wiener, Norbert (1971). Cybernétique et Société , L´Usage Humain des Êtres Humains. Éditions des Deux-Rives, p.264. A citação em epígrafe encontra-se na p. 262.

[13] Minsky, Marvin (1988). The Society of Mind. Simon & Schuster: NY.

[14] Winograd, Terry (1997). The Design of Interaction. In Peter J. Denning & Robert M. Metcalfe (Eds.), Beyond Calculation – The Next Fifty Years of Computing. Springer-Verlag:NY, pp. 149-161.

[15] Floridi, Luciano (1999). philosophy and computing. London: Routledge, pp. 209-215.

[16] Horberg, John (1995). Talk to My Agent: Software Agents in Virtual Reality. Computer-Mediated Communications Magazine, vol.2,n.2,p.3 http://www.december.com/cmc/mag/1995/feb/horberg.html .

[17] Floridi, Luciano (1999). philosophy and computing. London: Routledge, pp. 209-215.

Relativamente a agentes de software, webbots, actores artificiais e VIPs utilizei ainda os seguintes recursos on-line: 

Wagner, Dirk N.(2000). Software Agents take the Internet as a Shortcut to Enter Society: A Survey of New Actors to Study for Social Theory. http://www.firstmonday.org/issues5_7/wagner/index.html

Software Agents: An Overview http://193.113.209.147/projects/agents/publish/papers/ 

Cesta, Amedeo and D´Aloisi, Daniela (1996). HCI in Italy: Building Interfaces as Personal Agents - A Case Study. SIGCHI, vol.28, n.3, July 1996. http://www.acm.org/sigchi/bulletin/1996.3/cesta.html .

Thalmann, Daniel (1996). Towards Intelligent Virtual Actors. http://ligwww.epfl.ch/~thalmann/papers.dir/3IA96.pdf 

Sobre VIPs: Virtual Invented People http://online.cs.nps.navy.mil/DistanceEducation/online.siggrap.org/2001/panels/09:VIPs_VirtuallyInventedPeople/cdrom.pdf 

[18] “Nos finais do século XX, o nosso tempo, um tempo mítico, todas nós somos quimeras, híbridas teorizadas e fabricadas como máquina e organismo; em resumo, somos ciborgues.” Foi recentemente traduzido para português por Ana Maria Chaves, “com algumas omissões do texto integral”, o importante Manifesto Ciborgue de Donna Haraway. Ver Macedo, Ana Gabriela (org.). Género, Identidade e Desejo – Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo. Livros Cotovia:Lisboa, 2002, p. 223. 

[19] Para uma simples e clara explicação de holograma ver o excelente livro de Hawking, Stephen (2002). O Universo numa Casca de Noz, Gradiva:Lisboa. pp.64 e 196. 

[20] Simondon, Gilbert (1989). Du Mode d`Existence des Objets Tehnhiques. Editions Aubier:Paris, p.19-49.

[21] A ideia de presença parece-me fulcral, nomeadamente em articulação com a de ciberconexão. Será desenvolvida noutro lugar continuando a reflexão que neste texto se iniciou.

[22] A citação em epígrafe do romance Conhecer uma Mulher de Amos Oz, publicado em 1992 pela Publicações Dom Quixote, encontra-se na p.8-9.