trans.gif (43 bytes) trans.gif (43 bytes)

  Falso alarme

  [ Jorge Martins Rosa ]

trans.gif (43 bytes)
trans.gif (43 bytes)

 

 

 

Comecemos por uma estimativa de custos. Quanto custa receber e reenviar uma mensagem de correio electrónico? Numa ligação de banda larga, perto de três milésimos de cêntimo por kilobyte, numa ligação dial-up, entre cinco a oito milésimos de cêntimo, consoante a conexão esteja já activada ou corresponda ao primeiro período de contagem. Incrivelmente mais compensador do que uma carta pelo correio normal, até mesmo do que uma simples fotocópia passada de mão em mão. Mesmo que se trate de uma imagem longa ou um vídeo curto (imaginemos 300 KB, valor não muito invulgar hoje em dia), mal chegamos ao cêntimo no melhor dos casos, e a dois cêntimos e meio no pior. Em casa cada um é senhor de si, dirão, mas aparentemente até mesmo numa empresa se tratará de um valor desprezível. A não ser que multipliquemos estes valores pelo número de empregados e lhes acrescentemos custos de quebra de produtividade provocados não só pela recepção e reenvio mas também pelo tempo de leitura. Na página da CIAC Internet Hoax Information, a estimativa torna-se quase assustadora, e faria sem dúvida as delícias ou terrores de uma empresa ou governo preocupados excessivamente (paranoicamente? Talvez, como veremos!) com o orçamento e com a contenção de custos, se pensarmos na quantidade de mensagens inúteis (num sentido excessivamente utilitarista, naturalmente) que todos os dias são trocadas. As piadas (escritas ou de teor visual) sobre George Bush são hoje em dia o exemplo mais comum, mas poderíamos acrescentar piadas de louras e alentejanos, apresentações em PowerPoint sobre o valor da amizade e dos animais de estimação, e vídeos de conteúdo no mínimo brejeiro. Ao menos um empresário japonês talvez veja nisso uma outra forma de fazer subir a moral (e portanto a produtividade, ao contrário do que se esperaria das linhas acima) dos seus empregados, depois de esgotada a novidade das sessões de ginástica oriental depois do almoço e dos combates de paint-ball às sextas-feiras ao final da tarde.

E quanto aos efeitos ao nível do significado, que dificilmente podem ser alvo de uma estimativa, e muito menos de uma argumentação em defesa de valores como a produtividade? A resposta só pode ser dada se alterarmos por completo a perspectiva: não o ponto de vista do indivíduo, que até certo ponto -- num primeiro momento -- podemos reduzir a um mero agente de propagação, mas sim daquilo que é propagado. É deste ponto de vista que devemos entender o conceito de «meme», proposto inicialmente por Richard Dawkins mas actualmente bastante popular, na Internet muito mais do que no mundo académico (no fundo, o conceito também ele se tornou um meme, como se perceberá depois de definido). O que é então um meme? É a música que trauteamos ao acordar e que passamos o resto do dia a tentar, em vão, que nos saia da cabeça. É o boato sobre seringas infectadas nas cadeiras das salas de cinema à espera de um incauto. É a incapacidade de pronunciar correctamente uma palavra porque o cérebro faz inconscientemente uma analogia com uma outra, assemelhando-a a esta última mais do que deveria. É, dirá Dawkins numa ilustração extrema, a crença num deus e numa salvação porque essa ilusão permite que o cérebro fique liberto para outras interrogações mais produtivas e menos angustiantes. Um meme, como um gene, é uma unidade auto-replicativa de significado, sem qualquer outro tipo de existência fora desse «mundo conceptual», não propriamente dotada de intencionalidade mas que «parasita» os cérebros daqueles que a possuem, como uma espécie de unidade mínima de cultura. Tal como um gene, sofre mutações e está sujeita a uma adaptação de tipo darwiniano, eventualmente «recorrendo» a processos de simbiose, mutualismo, competição e parasitismo, quer relativamente a outros memes quer relativamente aos indivíduos de que se «serve». Se deixa de cumprir uma função útil ao indivíduo, ora permanece como sobrevivência ora se extingue dando lugar a memes mais «adaptados».

Tal como no caso de uma doença, é crucial para o meme que possa propagar-se, pelo que o actual aumento da velocidade de propagação (bem como da sua extensão, o que é praticamente um sinónimo de «globalização») lhe é em princípio favorável. Poderíamos por isso afirmar que uma das características mais marcadas do contemporâneo não é, como muitos procuram defender, que se trata de uma sociedade da informação e do conhecimento (no fundo, esse é mais um meme que vive um momento de excelente forma), mas antes de uma sociedade da proliferação dos mais diversos memes. Se assim fosse, teria de admitir-se que a razão estaria, após séculos em que isso era uma mera esperança num momento futuro de emancipação do ser humano, finalmente a triunfar sobre o mito e sobre a irracionalidade, desempenhando o seu papel de seleccionador-mor de todos os memes. Ao contrário, os critérios de sobrevivência e «saúde» dos memes parecem eludir esse princípio racional, assistindo-se portanto à alegre convivência (quantas vezes num mesmo indivíduo) de saberes científicos (na maior parte das vezes filtrados pela simplificação dos media), paixões pelo esotérico e pelo oculto (cf. o interessantíssimo livro de Erik Davis, Technognosticism), ou tão-só (talvez a categoria subrepticiamente mais comum) uma crença em pseudo-factos sem qualquer outra sustentação que não a sua capacidade de atrair e de produzirem, graças a diversos mecanismos internos, um ilusório valor de verdade.

E nos casos em que a atracção (num sentido positivo) é algo fora de questão, já o sabiam Maquiavel e Hobbes, trata-se de suscitar o temor, mecanismo aliás muito mais eficaz quando conjugado com um meio ambiente particularmente receptivo ao que se insinua nos receios mais inconscientemente instalados. Pense-se, por exemplo, na tese que Michael Moore apresenta no polémico mas recentemente aclamado Bowling for Columbine. O que leva os americanos a adquirirem armas, barricando a sua defesa (literalmente!) numa invocação a uma Segunda Emenda à Constituição, escrita num momento em que a América ainda era selvagem e o Estado não tinha o grau de coesão -- não esqueçamos a clássica definição do Estado como detentor legítimo do monopólio dos meios de violência -- que na mesma época já caracterizava a maioria das nações europeias? Mas, mais ainda, o que os leva, ao contrário dos canadianos que possuem uma percentagem maior de armas por lar e contudo deixam as portas no trinco mesmo depois de assaltados, a fazerem uso dessas mesmas armas atingindo um recorde (absoluto e per capita) de incidentes fatais com armas de fogo? Como na breve sequência animada nesse mesmo documentário, os peregrinos emigraram para a América por medo da perseguição religiosa, massacraram os índios por medo duma cultura estranha, os seus descendentes reinventaram a escravatura por medo de trabalhar, fundaram a Ku Klux Klan por medo dos negros emancipados, barricaram-se em subúrbios por medo da diversidade das cidades ..., tudo numa sequência interminável de paranóias cada vez menos fundamentadas mas também cada vez mais enraizadas e mais promovidas directa ou indirectamente por todos aqueles que delas fazem uma forma de lucro. E se houver quem duvide do realizador, como se este tivesse sido acometido por uma espécie de «excesso de zelo», leiam-se algumas das mais interessantes novelas de Philip K. Dick, onde a paranóia de algumas personagens-chave atinge um grau tal, numa espécie de kafkianismo invertido, que obriga a realidade a ajustar-se a ela. Self-fulfilling prophecies, ou um receio tão infundado da violência que gera a própria violência, que assim poderá alimentar um medo ainda maior porque legitimamente confirmado. Excelente adubo para os memes...

Acrescente-se a tudo o que foi acima referido o ganho, do ponto de vista da vantagem competitiva do meme, quando se passa a uma propagação por via dos meios electrónicos, que permitem levar a um cúmulo a velocidade, a extensão, a ténue relação a um referente externo. O que nos leva de novo à questão dos receios viscerais. Se pensarmos que as inócuas anedotas e gags visuais que circulam pelas caixas de e-mail têm uma vida bastante activa mas habitualmente curta, tal deverá significar que a velocidade de propagação não se traduz necessariamente, como fora adiantado acima, num meme bem sucedido a médio ou longo prazo. Muito mais eficaz é um meme que se serve de naturais receios dos indivíduos para se propagar e incentivar ainda mais a propagação. A melhor ilustração vem-nos dos alertas sobre vírus ou outros problemas informáticos (como o famoso, influente, mas totalmente extinto bug do ano 2000). O recurso a supostos simulacros de autoridade, como «A McAfee emitiu hoje um alerta...» parece aumentar a verosimilhança, e portanto a capacidade de propagação, mas o receio parece tão bem instalado que até mesmo esse dispositivo é por vezes dispensável, tal é a capacidade de levar a que os indivíduos se disponham a reencaminhar a mensagem para todos os contactos na sua caixa de correio (e a seguir as instruções mencionadas, como no caso do alerta sobre o «vírus» Teddy Bear1) Resultado da crença na mensagem: servidores de e-mail mais congestionados, por vezes componentes essenciais ao sistema operativo apagados e um dispêndio de tempo, não só improdutivo como contraprodutivo. Sem bruxas para queimar, a «sociedade da informação» cria as suas próprias «tecno-bruxas», que nos surgem sob a forma ominipresente de uma teoria da conspiração...

«A mensagem convidava o destinatário a procurar um ficheiro executável intitulado jdbgmgr.exe, identificável pelo ícone de um urso, e a apagá-lo. Numa das variantes da mensagem, o receio era instigado afirmando-se que, tratando-se de um vírus que se auto-envia para todos os contactos da mailing list do utilizador, estaria muito provavelmente presente também no do destinatário. O executável em causa é contudo, apesar do suspeito ícone, essencial a certas tarefas do Windows, o que na prática significava que se estava a propor um estrago maior do que o de muitos vírus legítimos. Cf. <http://urbanlegends.about.com/library/bl-jdbgmgr-virus.htm»>