«My mother
said that my first word was “alleine” which means alone.
Leave me alone.» Lucian Freud 1
A primeira sensação é a da força,
da intensidade e da singularidade do humano que
as pinturas de Lucian Freud não cessam de apresentar. Um
olhar, um rosto, uma vida. A exposição apresentada
na Tate Gallery de Londres, de 20 de Junho a 22 de Setembro de 2002,
oferece-nos uma possibilidade privilegiada de conhecer o minucioso
estudo sobre a vulnerabilidade humana, desenvolvido por
Lucian Freud, nome incontornável da pintura britânica,
cuja vasta obra conta já com cerca de 60 anos.
Existe uma qualidade paradoxal no trabalho de Lucian Freud, uma
requintada ironia face ao hermetismo pictórico modernista,
que se pode exprimir do seguinte modo: o retorno à pintura
figurativa, como a transgressão por excelência
dos princípios fundamentais do projecto modernista ao longo
do século XX 2,
mesclando tendências heterogéneas, como um visível
interesse formal e experimental em termos de proporção
e perspectiva, gerando efeitos de estranheza e complexidade estrutural
(próximos das distorções expressionistas),
por um lado, e uma tendência para a imbricação
do plano de composição da arte no plano de imanência
da vida, imperativo vanguardista, que surge declinado na obra de
Freud de modo extremamente singular.
Efectivamente, o caminho individual, delineado por Freud, apresenta
uma tenacidade invulgar, uma coerência singular, avessa às
modas e tendências, onde vemos emergir o retrato, como categoria
central onde o visível se vem tecer no vivível, pela
graça do olhar. A força intensiva dessa atmosfera,
o buraco negro de um rosto,
o desgaste acolhedor e afectivo de uma cadeira,
o corpo quente e adormecido de um cão,
não se reduzem a uma narrativa, mas tão pouco a um
mero elemento de composição, exprimem ao invés
o sopro de uma vida.
A retrospectiva da obra de Lucian Freud, organizada em sequência
cronológica, mostra-nos a evolução do trabalho
do pintor, evidenciando uma grande mudança na arte de Freud
no início dos anos 60. Com efeito, logo na passagem dos quadros
realizados entre 1941 e 1946 - estranhos
retratos, assemelhando-se a ilustrações,
libertas de fins narrativos, naturezas
mortas, meticulosos desenhos
de plantas e animais
-, para os retratos dedicados a Kitty 3,
entre 1947 e 1950, vemos uma progressão no sentido do retrato
fiel 4,
preocupado com uma meticulosa observação do sujeito
retratado e abdicando gradualmente dos exercícios de estilo.
Girl
with a Kitten, 1947, e Girl
with Roses, 1947-8, evidenciam um trabalho minucioso,
que Freud realizava sentado, em grande proximidade com a tela, preocupando-se
com o detalhe da visão na percepção do modelo.
Este estilo irá desenvolver-se nos quadros dedicados a Caroline
5,
acentuando-se nestes retratos uma atmosfera de ansiedade e confinamento
dos sujeitos retratados que se tornará uma marca indelével
do universo de Freud.
Hotel
Bedroom, 1954, exprime a intensidade do afecto
entre as personagens retratadas (Caroline e Lucian) mesclada numa
profunda inquietude, uma perturbação sufocada que
é duplicada pelo vazio do quarto do outro lado da rua. Entre
a silhueta de Lucian Freud e o rosto de Caroline, em primeiro plano,
vemos crescer um abismo de solidão que reúne e separa
as personagens no espaço exíguo do quarto de hotel
6.
Na verdade, tal como Peter Campbell assinala em «At Tate Britain»
7,
o desconforto e o desnudamento que marcam a natureza da relação
entre o pintor e o sujeito retratado, são igualmente espelhados
pelas características dos espaços que os quadros representam.
O estúdio de Paddington, onde
Harry Diamond permanece hirto e tenso
contra uma parede nua, junto a uma pontiaguda planta, alta e seca,
vaso rachado sobre carpete vermelha, é um desses espaços
despojados e obsessivos de Lucian Freud. Em Large
Interior, Paddington, 1968-9, a perspectiva torna-se
vertiginosa e é o corpo semi-nu da filha Ib que se oferece
sobre o chão árido onde o vaso agora suporta uma plenitude
de ramos entrelaçados, na explosão verde de uma planta.
Um casaco de homem, pendurado, assinala a atitude de um olhar. Nas
palavras de Freud: «There is something about a person being
naked in front of me that invokes consideration. You could even
call it chivalry on my part; in the case of my children a father’s
consideration as well as a painter’s. They make it all right
to paint them. My naked daughters have nothing to be ashamed of»
8.
Ora, do detalhe minucioso do traço de Hotel Bedroom
à expansão intensiva da cor e à exploração
táctil de Large Interior, Paddington vemos claramente
uma profunda mudança no trabalho de Freud, que progride nos
anos 60 para um estilo muito mais solto e livre, onde a sua pintura
ganha uma nova densidade, exprimindo na sobreposição
de planos e na exploração dos pigmentos a intensidade
das múltiplas percepções subtis. Freud descreve
esta transição de um modo profundamente físico:
«My eyes were completely going mad, sitting down and not being
able to move. Small brushes, fine canvas. Sitting down used to drive
me more and more agitated. I felt I wanted to free myself from this
way of working. Hotel Bedroom is the last painting where
I was sitting down; when I stood up I never sat down again»
9.
Naked
Girl, 1966, constitui um marco não só
da mudança de estilo de Lucian Freud, como também
da sua exploração de um género raro na pintura,
o retrato nu. O quadro oferece-se como uma celebração
da nudez daquele corpo, banhado numa generosa luz, sobre uma manta
branca que, desta vez, apresenta um toque macio, envolvendo confortavelmente
o corpo anguloso e denso da jovem. Os lábios entre-abertos
e a posição dos braços deitados para trás,
lassos, num gesto de entrega, marcam uma atmosfera de afecto e de
vulnerabilidade singular. O corpo da jovem é olhado de cima,
acentuando-se a proximidade entre o modelo e o pintor, num olhar
quase fotográfico, que se adensa na textura espessa da pintura
a óleo. Em Naked
Girl Asleep II, 1968, o ângulo de visão
aproxima-se ainda mais e o corpo da jovem ganha tensão, a
mão direita bem fechada, o polegar preso nos restantes dedos,
o corpo contorce-se agora, desconfortavelmente, sobre um fundo mais
escuro e agreste.
A evolução dos retratos nus de Lucian Freud acentuará
a estranheza, a imobilidade e o desconforto dos sujeitos retratados
em espaços despojados e recorrentes. Sunny
Morning – Eight Legs, 1997, é emblemático
neste sentido representando o pintor David Dawson, nu sobre uma
cama envolvida em lençol branco, numa posição
visivelmente desconfortável, que expõe os seus orgãos
genitais e a magreza do seu corpo, abraçando Pluto, o cão
de Freud, que parece adormecido. Dawson apresenta uma expressão
algo perturbada, no mínimo tensa, cuja estranheza é
acentuada pela figuração duplicada das pernas do pintor
(agora dispostas em direcção contrária) que
se dão a ver sob a cama, parcialmente saindo por debaixo
do lençol 10.
Com efeito, quadro após quadro, década após
década, vemos adensar-se no trabalho de Freud a expressão
da vulnerabilidade dos corpos e dos rostos, essa nudez tocante e
profundamente humana, onde a vida vem inscrever na carne a marca
da paixão e da dificuldade. Tal como Peter Campbell afirma
em «At Tate Britain»: «Though Freud is happier
to quote French influences, to find precedents for his way of seeing
bodies one has to look north, to Dürer’s drawing of his
own face and emaciated body after an illness. The saved and damned
in Northern Last Judgments are less fleshly than Freud’s naked
people, but the sense they give of individual vulnerability is closer
to his spirit than, say, the gratified, assured flesh Courbet (another
of Freud’s enthusiasms) painted» 11.
Esse persistente olhar sobre a nudez humana, visivelmente interessado
na crueza do corpo, no impacto das formas e volumes, no choque do
corpo extremo - o tamanho e potência de Leigh
Bowery, o volume e dobras de Sue
Tilley, a magreza e angulosidade de Freddy
-, tem a sua declinação mais tocante na série
única e sem precedentes dedicada a Lucie, mãe de Freud,
rosto incontornável de expressão de fragilidade e
nudez, embora em todos os seus retratos ela se apresente vestida,
com um toque extraordinário de ordem e pudor. Freud começa
a pintar Lucie em 1972 após a morte de Ernst, pai de Freud,
que deixou Lucie devastada, num profundo estado de depressão
que a levou a uma tentativa de suicídio. Preocupado com a
mãe e tentando dar-lhe alguma distracção, Freud
passou a ir buscá-la todas as manhãs, durante cinco
anos, para a levar a tomar o pequeno-almoço à Pastelaria
Sagné, em Marylebone Hight Street, antes de irem os dois
para uma sessão de quatro horas de pintura no seu estúdio.
The
Painter’s Mother II, 1972, marca o início
desta série num retrato tocante onde a intensidade expressiva
do rosto de Lucie revela claramente sentimentos de conflito e dor,
inscritos nos seus traços fisionómicos e na configuração
dinâmica do rosto através de camadas espessas de cor
e luz. Já em The
Painter’s Mother Resting I, 1976, Lucie
surge deitada, sobre uma colcha branca, com um vestido cuidado de
minucioso padrão estampado sobre fundo branco. Os seus braços
dobram-se deitados para trás, o rosto é sereno, o
reflexo da aliança no dedo adivinha-se sobre a almofada.
Ela apresenta um ar simultaneamente obediente e infantil, sugerindo
que a sua pose lhe foi pedida, o que não é de todo
um hábito de Lucian Freud. A vulnerabilidade e entrega de
Lucie adensam-se em The
Painter’s Mother Resting, 1982-4, onde a
sua expressão aparenta uma gravidade singular, a mão
que toca no ventre parece invocar uma memória da gravidez,
e inteiramente vestida de branco, Lucie parece tocada por uma ausência,
uma perturbante passividade, esperando, vendo o tempo passar, olhando
o fim do tempo. The
Painter’s Mother Dead, 1989, conclui a série
no pudor de um desenho do rosto da mãe morta, retrato de
uma nudez incomensurável, imensa profunda carícia
do olhar. «From very early on she treated me, in a way, as
an only child. I resent her interest; I felt it was threatening.
She was so intuitive. And she liked forgiving me; she forgave me
for things I never even did», afirma Freud.
Aline,
2000, Small
Portrait, 2001, e Woman
with Eyes Closed, 2002, são alguns dos
retratos mais recentes pintados por Freud e apresentados nesta retrospectiva
fundamental da obra do pintor. Neles vemos uma experimentação
brilhante em termos de cor (amarelo, cinzento, rosa, laranja, branco
sujo compõem os rostos) e da liberdade potenciada pela pintura
a óleo (múltiplas camadas sobrepostas, correcções,
marcas que diferenciam os múltiplos planos do rosto). Num
momento em que múltiplos são os diagnósticos
da finitude ou desaparição do traço do humano,
Freud celebra na pintura a imanência da vida e a dádiva
da nossa fragilidade, exprimindo essa liberdade soberana de uma
obra em plena maturidade, cuja marca perdurará incontornavelmente
na pintura de um tempo que é o nosso.
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