Em Abril de 1953, Francis Crick e James Watson
descobriam a estrutura helicoidal do ADN, pondo fim às milenares
especulações sobre como eram transmitidas e herdadas
as características físicas dos organismos mas também,
e fundamentalmente, abrindo caminho para uma aliança entre
biologia e teoria da informação que, por via de conceitos
como o de código, viria a tornar finalmente possível
a manipulação destes. Dum ponto de vista puramente
científico e desejavelmente neutro, os avanços nestes
quase cinquenta anos foram menores do que o esperado, mas nem por
isso menos significativos. Do ponto de vista de algumas correntes
éticas, ter-se-á avançado demasiado. Daquele
que nos interessa aqui abordar, é preciso não esquecer,
perante tudo o que avançou, quais os recuos e inflexões
no percurso. Inflexões que, como se pode adivinhar, se traduzem
no uso extremamente restrito que hoje fazemos da palavra «clonagem».
O que entendemos hoje por clonagem? O tempo, como de costume, limitou-nos
os horizontes semânticos. Chamamos clonagem a uma reprodução
fiel, não sexuada, de preferência feita com uma deliberação
assistida pela técnica, de seres vivos do reino animal a
partir do seu código genético, mesmo que limitada
a um conjunto de células. Esquecemo-nos habitualmente de
que a reprodução não sexuada é de longe
a mais comum (mais de 99% dos seres vivos), atravessando não
só os domínios procarióticos das Bacteria
e das Archaea (cf. Stephen
Jay Gould, Full House e Daniel
Dennett, «Memes: mitos, más compreensões e más
atribuições») como também o domínio
eucariótico onde pontuam as plantas -- os ancestrais fetos
e cicas possuem, como forma alternativa de reprodução,
a propagação por estolhos ou caules secundários
(cf. Oliver Sacks,
A ilha sem cor) -- e os animais. De entre estes, ao que
tudo indica, haverá também casos em que a reprodução
assexuada é uma possibilidade, mesmo que ainda mais rara
do que no caso das plantas. Estando ausente um outro organismo da
mesma espécie que forneça a metade genética
complementar do processo de meiose celular, e substituindo a meiose
por uma mitose que conduza à autonomia das células
copiadas, um organismo individual (fenótipo) que resulte
de uma reprodução assexuada é (excepção
feita a eventuais mutações durante o tempo de gestação)
geneticamente equivalente ao que lhe deu origem.
Um clone, portanto, não se desse o caso de aí evitarmos
a palavra: sendo tais processos tão estranhos à intervenção
humana, que razão haveria para os denominarmos com um substantivo
que tanto semântica quanto foneticamente invoca o produto
duma actividade? Restariam portanto a deliberação
humana e a técnica que permite pô-la em prática,
o que não só é muito pouco para que se justifique
deixar de lado todos os casos acima referidos como, situação
ainda menos notada, abre o campo a todo um outro tipo de especulações,
no limite metafísicas. Expliquemo-nos: sob o termo clonagem
-- e talvez seja essa a grande razão para tanta polémica
-- esconde-se um pressuposto, o de que se pode estabelecer uma relação
biunívoca entre o suporte genético de um organismo
e algo da sua manifestação visível. Se esse
algo mais é apenas o organismo físico, aí se
incluindo qualquer componente mental como epifenómeno, situamo-nos
numa posição «monista», como a que parece sustentar
alguns dos receios éticos em torno da clonagem humana. Como
aceitar que um mesmo indivíduo vive uma dupla vida, de alguma
maneira prolongando artificialmente a sua existência? Se,
em contrapartida, empurramos a componente física para o lado
genético, o «monismo extremo» desta inseparabilidade oculta,
na medida em que tal implica abandonar do outro lado a parte mental,
um «dualismo» quase cartesiano. Sem dúvida que esta classificação
tem algo de caricatural, na medida em que apaga as múltiplas
e subtis variantes que podemos encontrar em cada uma destas posições
de base, mas ela é ainda assim suficiente para permitir rever
uma série de possibilidades hoje afastadas.
Para a mais radical das versões deste dualismo, a verdadeira
individualidade é algo imaterial (ou quando muito dependente
de um outro tipo, infinitamente mais subtil, de matéria)
e o corpo não é mais do que um mero suporte que garante
a sua existência física. A descoberta do ADN e do código
genético apresenta-se a esta posição como algo
pouco relevante, a não ser que -- e com isto tocamos uma
variante um pouco menos radical, a caminhar para um monismo mitigado
-- se pressuponha adicionalmente algum tipo de «afinidade electiva»
entre um repertório de almas à espera da combinação
genética que lhe corresponda e os corpos que as vão
receber. Se, pelo contrário, este corpo for algo indiferente
(o que é apesar de tudo a única forma de sustentar
a igualdade política entre indivíduos e evitar uma
«fisiognomonia» dos carácteres), abre-se a porta à
possibilidade de insuflar alma ou inteligência num corpo distinto.
É o que propõem Turing, com a ideia de que a inteligência
reside no programa, independentemente de qualquer suporte físico,
ou, mais recentemente, Hans
Moravec, ao sustentar que se pode fazer download de uma
mente humana num dispositivo artificial. Admitindo que essa mente
tem ou teve uma existência prévia num corpo «normal»
de onde se extraiu o «programa», tratar-se-ia portanto de uma forma
alternativa de clonagem (chamemos-lhe re-produção),
sendo que esta se transforma em predação caso
o novo corpo tenha uma anterior existência e seja para tal
necessário esvaziá-lo da «alma» que possuía.
Se o «programa», pelo contrário, foi extrapolado a partir
de algumas características observáveis de um outro
corpo para a ele se assemelhar, ou, no limite, concebido de raiz,
sem referência a um original, teríamos um simulacro
no sentido baudrillardiano.
Aproximadamente na mesma altura, tal tipo de especulações
deixava de ter lugar apenas nos campos filosófico -- de onde
despontava, sob novas formas, o problema «mente-corpo» e
religioso -- onde o estatuto daquilo que há que salvar, a
alma, é cada vez mais problemático. As novíssimas
tecnologias da informação pareciam estar prestes a
encontrar o caminho (desde
então cada vez mais desacreditado) -- rumo à inteligência
artificial -- não esqueçamos que o já clássico
«Computing machinery
and intelligence», de Alan Turing, data de 1950. Procurando
acompanhar estas últimas de perto, a ficção
científica ensaiava possibilidades ainda mais irrealistas,
mas não sem se filiar discretamente nos mesmíssimos
pressupostos que qualquer dos outros campos mais institucionalizados
explorava. Curiosamente -- e vem à memória o lugar
comum que diz que a realidade é mais estranha do que a ficção
--, não era ao ainda incipiente campo da genética
que a ficção científica ia buscar a sua inspiração,
e sim às ligações mais especulativas de teor
metafísico que acima enumerámos. Estas três
variantes resistem ainda hoje, aliás, como topoi da
ficção científica, quer como último
reduto de especulações que, recusando o processo sancionatório
da cientificidade, roçam o fantástico, quer aceitando
o já bem instalado campo da genética, eventualmente
procurando um ganho de credibilidade.
Nesses mesmos anos de 1952 e 1953, Philip
K. Dick, actualmente um dos mais consagrados autores do género,
esforçava-se por fazer carreira escrevendo -- a um ritmo
que continuaria a demonstrar em obras de maior fôlego -- contos
para pulps como a Fantasy & Science Fiction, a Amazing
Science Fiction ou a Galaxy.
Em «Beyond Lies the Wub», o primeiro conto que publicou (para a
Planet Stories), uma equipa de exploradores espaciais traz,
no caminho de regresso à Terra, um wub, animal em
tudo semelhante a um porco. Para o capitão da nave, não
há outro destino pensável para o animal que não
seja o de servir de refeição. O wub pensa de
outra forma: comunicando telepaticamente com a tripulação,
revela o seu interesse em conhecer as mais elevadas produções
da civilização humana: a filosofia, a mitologia, a
arte. Apesar da contestação de outros tripulantes,
o capitão concretiza o seu prosaico objectivo de fazer do
wub um banquete, mas apenas para, no final, reestabelecer,
agindo como a nova voz do animal que assimilou, o diálogo
intelectual. Ainda que de forma semi-voluntária, o capitão
é predado pelo wub, que assim consegue fazer
reviver a sua alma num outro corpo. A originalidade de «Beyond Lies
the Wub» (veja-se também «Human Is»), que releva do triunfo
irónico do feitiço que se vira contra o feiticeiro,
tem como contraponto todo um ror de outras histórias muito
mais de acordo com a ideologia mainstream (K. Dick também
as escreveu, sendo disso exemplo «The Hanging Stranger» e «The Father
Thing», ambas escritas em 53), onde seres extraterrestres invadem
a terra, substituindo-se a pouco e pouco aos habitantes que predam
por um processo de body-snatching. Inútil tentar saber
se tais histórias surgiram em tão grande quantidade
(veja-se, por exemplo, a conhecida série de televisão
The Twilight Zone) por irem ao encontro de receios já
presentes na população ou se, pelo contrário,
estas potenciaram novos receios. Pouco importa. O Outro, que na
ficção científica deixa de ser aquele que partilha
de outra cultura ou de outra ideologia para passar a ser o extraterrestre,
é hoje em dia o não-natural, o artificial, aquele
que viola, pela sua mera existência, a discutível lei
(da Natureza, de Deus?) segundo a qual cada um deve ter uma existência
única. Um nascimento natural, um corpo natural (apesar das
excepções que entretanto foram sendo aceites), uma
mente que será conservada até ao momento de uma morte
também natural.
A morte é, de resto, o mais impositivo dos limites. Viver
duas vezes, em dois corpos, de forma simultânea ou consecutiva,
não seria algo tão condenável (apesar das dificuldades
jurídicas que daí decorreriam) se isso não
implicasse morrer duas vezes. Ser predado por um extraterrestre
pode ser um destino trágico, mas ao menos a mente (alma?)
do indivíduo extinguiu-se. Maior ultrage é o do indivíduo
que voluntariamente abandona o corpo com que nasceu para se instalar
num outro, tanto mais se este apresentar vantagens sobre a carne
que era sua. Pouco depois de «Beyond Lies the Wub», a revista Imagination
publicava «Mr. Spaceship», também de Dick. Perante uma derrota
iminente numa das colónias espaciais da Terra, os colonizadores
decidem reproduzir as capacidades de combate do inimigo, que possuem
armas em tudo iguais a seres vivos (reparam-se autonomamente, reproduzem-se,
parecem dotadas de intencionalidade). A nova arma terrestre será
uma nave dotada de inteligência e, na impossibilidade de se
recorrer à sua forma «artificial», decide-se usar o cérebro
de um velho professor de física, prestes a falecer, como
centro de controlo da nave. Vendo aí a sua oportunidade de
imortalidade, o velho professor propõe algumas alterações
ao projecto que lhe permitem ter um controlo quase absoluto da nave,
como se esta fosse o seu novo corpo. Depois de uma rebelião
contra os propósitos que lhe tinham sido atribuídos,
rapta um casal de antigos alunos (um deles era um dos autores do
projecto) para fundar uma nova civilização num planeta
distante onde ele será como um deus e os ex-pupilos novas
versões de Adão e Eva. É certo que, estritamente
falando, não se trata tanto de uma re-produção
tal como a descrevemos acima, e sim de um transplante, mas o pressuposto
da separação mente-corpo é suficientemente
tomado como adquirido para que sejam conservadas as características
fundamentais de personalidade do velho professor. Fugir para um
planeta deserto e recomeçar tudo surgem muito menos por vontade
do que por necessidade de fugir de uma cultura que apenas aceitará
o estranho, a anomalia no processo vital, na medida em que este
estiver ao seu serviço como mero instrumento, como robot
em que a inteligência humana é um mero apêndice.
A mesma lógica está subjacente aos organismos puramente
artificiais, robots ou andróides. O paradigma desta
dualidade -- que foi aliás desenvolvida sob a forma de ensaio
pelo próprio Philip K. Dick em «The
Android and the Human» -- é o bem conhecido Do Androids
Dream of Electric Sheep?, ou Blade Runner, a novela de
Dick que até agora mais imitações no campo
da ficção e mais comentários académicos
gerou. Quase década e meia antes de Do Androids Dream...,
já Dick explorava o tema em contos como «Second Variety»
e «Impostor». Neste último, assiste-se de novo a uma situação
de guerra interplanetária, agora entre a Terra e um planeta
do sistema Alfa do Centauro. Olham Spence, engenheiro requisitado
para o esforço de guerra, vê-se subitamente perseguido
pela Agência de Segurança, acusado de ser um andróide
que tomou o lugar do verdadeiro Olham e que, quando pronunciada
uma frase, explodirá a bomba que transporta no seu interior.
Sendo impossível provar que os agentes estão errados,
uma vez que estes alegam que o simulacro é tão
perfeito que o andróide foi programado com a memória
de Olham, este foge, dirigindo-se para o local onde a nave espacial
com o andróide se terá despenhado. É aí
finalmente capturado no momento crucial em que descobre os restos
mortais do verdadeiro Olham. Surpreendido pela descoberta, pronuncia
a frase-detonador «Se este é Olham, então eu devo
ser...», com isso destruindo todo o planeta. Paradoxo fundamental,
que Dick viria a identificar como um dos temas mais recorrentes
da sua obra, só uma mente em tudo equivalente à humana
seria capaz de experienciar incerteza quanto a quem é e chegar
a um diagnóstico final tão repleto de perplexidade.
Perplexidade, espanto, a procura da ambiguidade: os grandes ausentes
de um debate sobre a clonagem que a ética a seu tempo afastou
e que apenas a ficção parece querer conservar...
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