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  A Máquina de Clones do Dr. Antinori

  [ Jacinto Godinho ]

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Severino Antinori, um médico italiano, escreveu o último capítulo do mais recente melodrama moderno que envolve a condição humana. Depois de ter anunciado várias vezes que a clonagem de seres humanos estava prestes a acontecer, anunciou recentemente, à boa maneira de Tom Clancy, que três mulheres, algures, estariam grávidas de embriões clonados.

Escolhi intencionalmente a palavra “melodrama” porque julgo que, para além da questão científica, a clonagem está a ser jogada decisivamente no campo dos sonhos, nessa outra dimensão que, para uns imaterial e para outros demasiado visível, rodeia a experiência humana. Dimensão onde florescem as mais belas possibilidades de devir, ou, pelo menos, aquelas que canalizam o desejo humano de ser e se apresentam como a possível superação da dor, do sofrimento e, claro, do absolutismo carnal do real. Por variadíssimas razões, que não interessa aqui aprofundar, entrámos numa época de conjuntura cultural em que o corpo próprio, aquele que possuímos desde o nascimento, é mais um fardo que carregamos que o veículo da nossa abertura para o mundo. Tornou-se por isso o centro dos múltiplos e variados bloqueios (alguns bem diferentes entre si ) e respectivos jogos de superação bio-técnico-cosméticos que por estes tempos alimentam a experiência humana. Muitos dos “nós” míticos e ainda por desenlaçar, do campo de sonhos, infiltraram-se em força na possibilidade técnica da clonagem e sobre ela descarregaram todo o potencial de desejo acumulado em séculos, trazendo consigo os correlativos e proporcionais terrores que normalmente os acompanham.
Quando, em 1997, o médico escocês Ian Wilmut, do Roslin Institute, anunciou a clonagem da ovelha Dolly, há pelo menos duas décadas que o tema era prioridade para o cinema mundial, que, como écran das inquietações humanas, raramente falha o alvo daquilo que é essencial em cada época. É verdade que durante os anos 80 o conceito chave não era o de “clone”. Com a ovelha Dolly convergiram para a categoria de “clone” todo um conjunto de “nós” políticos, estéticos, sociais e identitários que anteriormente andavam dispersos em problemas como o da “série”, do “duplo”, “cyborg”, “heteronímia” etc, etc. Convergiram porque a clonagem, mais que resultado de um óbvio concreto científico, é em grande parte oriunda dessa menos óbvia quinta dimensão da experiência que procura decidir o humano através de projectos loucos (fábulas, super-heróis, utopias). Só que a nova ideologia biotécnica da clonagem promete algo que as anteriores produções desse campus ( da imaginação) nunca conseguiram. Promete a concretização iminente na experiência de um “duplo” em matéria carnal e não apenas nos écrans de ligação ( cinemas, televisão, livros, quadros). Écrans que, apesar da sua antropomorfização iminente, vão-se mantendo por enquanto apenas e ainda no limbo, na fronteira entre a realidade e a imaginação. Recorde-se apenas que esse duplo carnal tanto é um dos sustentos de várias religiões da civilização ocidental: “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança”, como alimenta também os secretos desejos por detrás da reprodução biológica. Quem secretamente, desejando ser pai ou mãe, não anseia ver no filho um seu clone, procurando ansiosamente, após o seu nascimento, sinais que lhe permitam “ver-se” no filho?
Em 1980, no filme A Sombra do Guerreiro (Kagemusha), o realizador japonês Akira Kurosawa expunha com toda a clareza a dimensão política da questão do “duplo”. À volta dos grandes chefes militares ou dos ditadores surgiram sempre estórias de duplos. Circularam boatos de que em 1945, durante a queda de Berlim, Hitler não teria morrido, e sim um duplo que contratou depois do atentado organizado por chefias militares do próprio regime alemão . Conta-se que no fechado regime comunista da Coreia do Norte o ditador Kim-Il-Sung há muito que teria morrido e que os partidários mostravam apenas um seu duplo, de tempos a tempos, em ocasiões especiais e de muito longe, para manter a fé do povo. O que explicaria as suas tão raras aparições.
N’A Sombra do Guerreiro o mesmo acontecia. Um homem perfeitamente parecido com um dos chefes feudais do regime samurai de Tokugawa foi usado para ocultar a morte do chefe guerreiro que, a revelar-se, poderia ser desmobilizadora. Com toda a mestria provocadora, Kurosawa colocou no lugar do ditador um ladrão com sentimentos morais mais nobres e humanos que este.
Numa época em que a democracia é, de alguma forma, a política na era da sua reprodutibilidade técnica, já que a questão do único e, portanto, do seu corpo deixou de ser decisiva, que sentido faz colocar a questão do duplo enquanto problema político?
Penso que Kurosawa antecipou o que aí vinha. Intuiu que o problema político da época (final do séc. XX) deixou de estar no regime e passou a estar na identidade. O que se joga em Kurosawa é a passagem da hereditariedade do poder para a sua humanização. Não há dúvida de que a questão do duplo é actualmente uma fortíssima questão política. Não o problema da existência de um duplo físico para mascarar o poder e proteger os lideres, mas a questão dos vários duplos numa só pessoa. Grande parte da questão política centra-se hoje sobre o problema da transparência do homem político. Será que o governante que vimos multiplicado em mil imagens, que o tornam familiar de todo o povo, é o mesmo em privado? Terá um lado oculto? É alimentado por interesses que o manipulam? Todo o mesmo framing melodramático e conspirativo, com que Antinori nos apresentou a questão da clonagem.
Num outro filme, este já pós-clonagem (6th Day, de Adam Gibson), o herói encarnado por Arnold Schwarzenegger, que procura antropomorfizar a experiência, confronta-se desta vez com o seu clone. A clonagem fantasmagoriza no campo da economia do herói o mesmo problema da duplicidade que há muito assombra a política – a destruição da fisicalidade matricial. A clonagem destapou a questão da duplicidade, colocando-a de novo como fantasma da coerência política. Tal como a reprodutibilidade técnica, denunciada por Walter Benjamin, desestabilizou a fisicalidade que estruturava o campo estético, também a clonagem ameaça a fisicalidade que estrutura os campos político e identitário. A democracia que se consolidou nos registos físicos da identidade (impressões digitais, assinaturas, ADN) poderá estar confrontada com um novo problema – uma dependência excessiva do único biológico, agora ameaçado pelos seus duplos. Nem a ingénua descoberta de Schwarzenegger, de que a ética do herói não pode ser clonada, é descanso suficiente perante a ameaça que o problema representa.

Nos anos setenta, depois da famosa operação de transplante de um coração, realizada pelo médico sul-africano Christian Barnard, o conhecido escritor alemão da literatura de massas, Heinz Konsalik, escreveu um romance com um argumento curioso. A máfia, com o oportuno sentido para o negócio que se lhe reconhece, decidiu raptar os melhores especialistas mundiais em transplantes. Colocou-os numa clínica apetrechada com os melhores laboratórios e, sob ameaça de morte, forçou os médicos a aperfeiçoarem a técnica e a realizarem transplantes em milionários à beira da morte. O negócio tinha como elemento sujo e brutal a possibilidade de a máfia matar jovens de forma industrial, para arranjar corações a qualquer hora e alimentar sem problemas o negócio.
Perante as palavras de Antinori veio-me à memória esta história. Imaginemos então que algures numa clínica (da Máfia? na Rússia? num país islâmico?) estejam várias mulheres desesperadas por realizar um sonho (um clone de um qualquer ente querido desaparecido prematuramente), a servir de cobaias para alimentar um futuro negócio muito lucrativo em volta de todas as possibilidades míticas que a clonagem promete realizar.
Esta história resume no essencial, pelo lado do imaginário, o problema político do duplo, que tanto mascara, protege e alimenta o mal (máfia) como pode resguardar o bem, fazendo dele um backup (o ente querido ou a personalidade genial). A máfia é uma metáfora do eterno mal que, estando por perto, oculto, nos engana e nos ameaça, porque se sabe disfarçar, servindo-lhe o clone de máscara perfeita. O clone aumenta as possibilidades de engano e, portanto, de inquietação.

Historicamente, a questão da clonagem biológica descende da reflexão e debate cultural que se originou em volta desses clones naturais que são os gémeos. No filme Irmãos Inseparáveis (Dead Ringers, 1988), David Cronenberg, ao regressar ao tema mais que batido da perturbação causada pelos gémeos na experiência, mostra que também teve uma intuição antecipada. Pressentiu que o tema iria regressar em força às problematizações humanas. O gémeo bom versus gémeo mau, iguais que se confundem e espalham problemas à volta, é tema recorrente da cultura ocidental, que resolveu sempre o problema destruindo um deles (o mau). Mas agora temos a noção de que o problema dos gémeos foi levantado antes do tempo na cultura, e que chegaria um dia em que a inquietação que revela se tornaria realmente um problema real. Chegou agora, com a clonagem e com a sensação de que nenhuma das respostas dadas (a destruição do elemento perverso) se pode aplicar agora.
A questão do enquadramento imaginário extra-dimensional, onde, para além do biológico, se coloca também o problema da clonagem, foi exposta de forma simples e extremamente perceptível por Bill Waterson nas tiras de Calvin and Hobbes. Calvin decide construir uma caixa de clones a partir de um caixote de papelão, fazendo surgir uma série de clones que assumem a responsabilidade de cumprirem todos os deveres do superego: ser bonzinho, bom aluno e educado. Uma clonagem que lhe oferece o disfarce perfeito para praticar a vida de excessos dionisíacos que adora . O problema é que a certa altura os clones o superam e ameaçam tomar o seu lugar. Calvin resolve o problema transformando a “caixa de papelão/máquina de clonagem” numa incineradora de clones.
Talvez tudo isto não tenha nada a ver com as coordenadas em volta das quais se discute a questão cientifica da clonagem. Mas, alargando o debate muito para além do biológico e do científico, talvez sirva para dar conta desses nós invisíveis e por desatar do jogo da experiência e que, ultrapassada a questão da clonagem, irão certamente para outras paragens.


(http://news.bbc.co.uk/hi/english/sci/tech/newsid_1477000/1477698.stm)