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  O Ciberespaço como Ideal de Emancipação

  [ António Machuco Rosa ]

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Introdução

No tempo rápido da Internet parece ter sido há muito, mas foi apenas há cerca de meia dúzia de anos que se julgou ser possível concretizar um ideal emancipador que radicalizaria a aspiração, característica da modernidade, a algo outro e diferente do real existente. É bem conhecido como os ideais emancipadores surgiram frequentemente no rasto do aparecimento de novas tecnologias, as quais possuiriam como singular propriedade a capacidade de contribuírem para a reformulação da experiência social num sentido ‘melhor’ e de ‘progresso’. Nas suas versões actuais, esse progresso permitiria à modernidade transfigurar-se em pós-modernidade e assim realizar o que para alguns parece ser o seu destino: a eliminação de qualquer exterioridade a indivíduos definitivamente autónomos e colocados como fonte absoluta de toda a realidade. Estaríamos agora – ou em meados da década passada - a viver o momento em que tecnologias com natureza e design inovador contribuiriam decisivamente para desaparecimento das últimas exterioridades que a modernidade ainda não teria destruído. É de facto um novo movimento ideológico, resultando da emergência e desenvolvimento das múltiplas redes de computadores redes de computadores que se foram federando em terno da rede de redes Internet, que surgiu como um dos traços marcantes da década de noventa.

Apesar de hoje persistir, o apogeu do movimento terá atingido o seu apogeu em meados da década de noventa. Nada de completamente acidental nessa data, visto que a corrente de pensamento genericamente designada por cibercultura ter sido não apenas uma consequência mas sobretudo uma resposta viva à arquitectura específica que a Internet possuía nessa altura. Recorde-se: a federação das redes de computadores fez-se com base em standards abertos e públicos (caso do TCP/IP, por exemplo) que não constrangem nem diferenciam as inúmeras aplicações que para eles foram sendo concebidas. Paralelamente, as diversas redes de computadores foram-se desenvolvendo de forma imprevisível e com (quase) completa ausência de regulação exterior. Após a criação de redes utilizadas sobretudo por cientistas, começaram a surgir os mais variadas tipos de novas redes, com variados graus de descentralização. Nos finais dos anos setenta e anos oitenta multiplicam-se as BB´s e redes como a Usenet, e depois a Web (cf. Machuco Rosa, 1998). Desenvolvendo-se de forma espontânea, a rede de redes Internet começa então a orientar-se para a comunicação. Surgem inúmeras ‘comunidades de comunicação’, e o livro que H. Rheingold publicou em 1993 permanece uma das suas descrições mais vivas da sua evolução. Esse livro será aqui um dos nossos pontos de referência.

>A ideologia das Comunidades de Comunicação

A emergência espontânea de redes muitas vezes com arquitecturas bastante descentralizadas proporcionou portanto o surgimento da comunicação mediada por computador (CMC). Resultou daí o multifacetado movimento da cibercultura juntamente com um tipo de ideologia que lhe é específico. Essa ideologia conjugou ‘organização espontânea’, ‘comunicação’ e ‘desencarnação’, resultando na concepção das redes de computadores como um instrumento permitindo a construção de um novo ‘espaço de liberdade’ que seria necessário preservar.

Esse novo tipo de espaço foi designado por espaço cibernético. As suas caracterizações são diversas, e neste artigo procuramos analisar algumas das mais relevantes. Uma de entre elas foi insistentemente sublinhada pela cibercultura durante a década de noventa. Para além do livro de Rheingold, ela foi sublinhada pelos textos originados na Electronic Frontier Foundation (EFF) na primeira metade dos anos noventa, e que podem ser obtidos em http://www.eff.org. É aí que se começa a delinear uma definição geral de espaço cibernético, e segundo a qual esse tipo peculiar de espaço se caracteriza por ser apenas fluxo de informação, sendo mesmo, o que não é pouco, ‘uma paisagem diferente de qualquer outra que a humanidade já tenha experienciado. É a Terra-Mãe da Idade da Informação’. Uma tal novidade não poderia deixar de trazer consigo mudanças radicais.

O espaço cibernético é apenas informação no sentido de se tratar verdadeiramente de informação desencarnada. O tema da informação desencarnada é recorrente na cibercultura, e ele decorre da ilusão de se julgar que do facto de se puderem simular inúmeros fenómenos em computador se segue que ‘simulação computacional’ e realidade física são a mesma coisa; logo, ‘tudo é digital’. Trata-se de uma ilusão que aqui não é importante esclarecer, pois, visto do ponto de vista da CMC, o tema da informação desencarnada aponta igualmente numa outra direcção. A comunicação mediada por computador é desencarnada por, muito simplesmente, ela se processar sem interacção física entre os indivíduos. Para a cibercultura, esse facto teria consequências decisivas. Ele geraria a possibilidade de surgir aquilo que se poderá chamar uma espécie de comunicação pura, no sentido em que, sendo completamente desencarnada, a comunicação não sofre dos inúmeros constrangimentos inerentes à comunicação acompanhada por certas marcas visíveis que distinguem e diferenciam os indivíduos. Será de facto assim? H. Rheingold torna claro o que se encontra aqui em jogo:

Visto não nos pudermos ver uns aos outros não podemos formar preconceitos acerca dos outros antes de lermos aquilo que eles têm para dizer: raça, idade, nacionalidade e aparência física não são visíveis a não que uma pessoa as deseje tornar públicas. (Rheingold, 1993, p. 422)

Não existindo comunicação face a face, ou mediada por um outro meio que retenha os constrangimentos da comunicação face a face, a CMC eliminaria os constrangimentos e marcas sociais que tipicamente existem na comunicação veiculada por outros meios. Ela contribuiria para eliminar a exclusão dos excluídos, e Rheingold vai mesmo ao ponto de afirmar que as dificuldades comunicativas com o telefone miraculosamente desapareceriam se o meio utilizado fosse a CMC. Uma tal posição pressupõe uma ideia comum a muitos dos autores que tematizaram o conceito de espaço cibernético: a ideia segundo a qual existe um certo tipo de tecnologias, a Internet neste caso, que determina automaticamente um certo estado de coisas que à partida já se supõe ser ‘melhor’, ‘socialmente melhor’. Essa pressuposição deverá ser analisada através de várias vertentes, mas aqui ela envolve adicionalmente a ideia segundo a qual uma comunicação pura, desencarnada, é necessariamente boa e melhor.

O raciocínio parece ser o seguinte: se existe um tipo de comunicação em que as interacções físicas não existem, no qual a única realidade é o fluxo de informação, então a comunicação é ‘boa’. Ela é ‘boa’ exactamente porque aquilo que torna a comunicação ‘má’, isto é, tudo aquilo que torna as interacções entre os indivíduos ‘más’, tudo aquilo que releva das inúmeras pressões dos indivíduos uns sobre os outros, pertence ao domínio - ontologicamente distinto do domínio da informação - da realidade física. Numa tal visão supõe-se que, sendo pura comunicação, os indivíduos atingiriam finalmente um ideal civilizacional mais elevado. Essa ideias não tem de estar necessariamente associada a um meio como a Internet. Ela encerra uma Metafísica da Comunicação. A Internet torná-la-ia definitivamente clara e efectivamente real. A Internet seria um acelerador de uma natureza humana activamente virada para o exterior: ligados à rede, os indivíduos não se encerrariam sobre si próprios, mas participariam permanentemente numa exterioridade colectiva comunicativa. Assume-se portanto que quando um indivíduo está comunicativamente virado para o exterior ele não está virado sobre si próprio e sobre as suas paixões tendentes a negar o outro. Esse ponto de partida é evidentemente muito problemático.

Tal como os proponentes da tese de que ‘tudo ‘é digital’ estão implicitamente a sustentar uma Metafísica da Informação, também os defensores da ideia de que a comunicação sem interacção física é algo bom estão de facto a assumir e a defender uma metafísica. Eles estão a sustentar que, sem interacção física, a comunicação se torna ipso facto impessoal, que ela se torna uma pura exterioridade a qualquer indivíduo. Nesse ideal comunicativo, e visto serem apenas seres comunicantes, os indivíduos estariam totalmente virados para o exterior, elidindo-se a si mesmos enquanto indivíduos histórica e socialmente situados no reino da suas paixões. Num movimento que veremos ser típico em diversos teorizadores da cibercultura e do ciberespaço, parte-se da afirmação da individualidade completa exprimida pela comunicação para se caminhar em direcção a uma espécie de comunitarismo mais ou menos explícito. Mas naturalmente que posições como as de Rheingold são literalmente metafísicas.

Em primeiro lugar, devido a uma essência supostamente possuída pelos indivíduos. Ver-se-á mais adiante que o raciocínio é idêntico no que respeita às tecnologias. Agora, escrever ‘essência’ significa que certos conceitos possuem uma natureza tal que os torna uma espécie de atractor para os quais as acções terão necessariamente de convergir num movimento gerador de unanimidade. Assim, ‘comunicar’ seria como que um ponto fixo estável e dotado de uma realização única, jamais um ponto fixo instável que admitiria pontos múltiplos de estabilidade. Noutros termos, ‘comunicar’ seria um processo decidível que teria de ser necessariamente bom. Mas não se poderá dar o caso de ser essa própria ideologia que surge como o verdadeiro ponto fixo atractor de opiniões?

Esse primeiro ponto encontra-se associado a um segundo pois, segundo esse tipo de ideologia, o indivíduo comunicativo completamente virado para o exterior é literalmente um anjo, entidade de facto completamente desencarnada. Que a posição de Rheingold envolve uma assunção extremamente problemática torna-se mais claro se se aduzir a observação empírica de acordo com a qual uma sociedade em que a comparação entre os indivíduos se baseia cada vez menos em ordens exteriores a todos eles, se baseia cada menos em certos indícios efectivamente físicos, torna-se de facto uma sociedade baseada em sinais comunicativamente mediados. Só que a consequência pode ser que quanto mais os indivíduos interagem apenas pela comunicação mais as comparações entre eles, e mais as comparações por relação a terceiros, se tornam dominantes. O aumento da transparência comunicativa de que a Internet seria uns dos factores pode estar ligado a uma maior visibilidade das diferenças com o consequente aumento das comparações entre os indivíduos. A ser assim, temas recorrentes da cibercultura, como a possibilidade do anonimato existente na CMC, em vez de relevarem de uma lógica de autonomia individual relevam de uma cada vez mais intensa comparação e pressão dos indivíduos uns sobre os outros. Não surpreende pois que o relato daquilo que efectivamente se passa ‘nas comunidades de comunicação’ de muitas sub-redes da Internet seja muito diferente do ideal de que Rheingold fala[1] . É um outro ponto fixo que se observa, não o ponto fixo ‘bom’. Mas não se está a sugerir que a convergência tenha de ser para o ‘mau’: neste artigo sustentaremos que certos conceitos e certas tecnologias são em si mesmas em indiferentes a um ‘social bom’ ou ‘social mau’. Eles são instáveis.

A deriva comunitarista

Os primeiros teorizadores do conceito de espaço cibernético sublinharam incessantemente que as novas tecnologias representam a possibilidade de realizar mais plenamente o ideal moderno de indivíduo livre e autónomo. No entanto, isso não implicaria a inexistência de qualquer laço comunitário. Pelo contrário, muitos textos salientam ser precisamente a partir de indivíduos livres e comunicantes que emergiriam comunidades; emergiria um laço social comunitário completamente imanente aos indivíduos. Segundo a Electronic Frontier Foundation, emergiriam Comunidades caracterizadas, (i), pela absoluta liberdade de informação e, (ii), com as restrições ao ponto (i) a serem determinadas de forma imanente pelos indivíduos. É (era?) mote da EFF: as comunidades on-line devem ter o direito de estabelecer os seus próprios standards de regulação.

As comunidades basear-se-iam em indivíduos interagindo comunicativamente e localmente uns com os outros, supondo-se que essas interacções gerariam por auto-organização um todo comunitário. Mais abaixo, ver-se-á como essa ideia se encontra associada às características tecnológicas de uma rede como a Internet. Mas a existência de ‘todos comunitários’ depende igualmente da tese segundo a qual a informação é intrinsecamente algo público, tal como os múltiplos indivíduos puramente comunicativos que a geram se reduziriam a um ‘espaço público de discussão’ (tema recorrente em Rheingold, que o vai buscar a Habermas). E se a informação é por natureza pública ela não pertence a nenhum indivíduo[2] . Tal seria particularmente verdade no que respeita à informação sob forma digital. É uma concepção que reflecte a metafísica da informação presente na completa dualidade entre corpo e informação: como a informação é completamente autónoma do mundo físico, ela é uma entidade platónica supra-individual que não possui qualquer conexão com os indivíduos corpóreos que a criaram.

Uma consequência bem precisa resulta dessa metafísica: não deverão existir leis de propriedade intelectual, em particular as leis aplicáveis ao software. É assim que um dos maiores difusores do conceito de Ciberespaço, John Perry Barlow, argumentou que, devido à tecnologia envolvida, a qual permite a duplicação ad infinitum, as leis de copyright não possuiriam qualquer aplicabilidade. Seria pois a tecnologia a impor uma certa alteração para ‘melhor’ do social. Na realidade, essa constrição tecnológica estaria de acordo com os princípios decorrentes do facto de o software ser apenas constituído por ‘ideias supra-individuais; são ideias que passam de indivíduo para indivíduo e de cultura para cultura sem possuírem versões autenticadas’[3], pela que a dicotomia informação/realidade física faz igualmente alterar a ordenação dos direitos de propriedade. Teremos de voltar a rever a questão da publicidade do código fonte do software, mas no presente contexto o platonismo de Barlow atesta de forma inequívoca que o movimento da cibercultura tem sempre implícita a tendência para um certo tipo de comunitarismo. Aplicado à questão dos direitos de copyright sobre o software, o princípio comunitarista envolve um paralogismo, pois se se começa por supor que a única realidade se encontra nos indivíduos autónomos propõe-se de seguida que nenhum indivíduo tenha direitos de propriedades intelectual. Mas note-se que uma tal proposta não emerge de qualquer ‘contrato social’ que livremente os indivíduos estabeleçam entre si. Ela apenas pode surgir como uma imposição exterior aos indivíduos, isto é, através de algo exterior às interacções reais entre os indivíduos e que acaba por as substituir.

Devemos esclarecer melhor as afirmações anteriores. As posições ‘liberais’, ‘anarquistas’, ‘individualistas’ dos activistas on line tendem a inflectir para uma espécie de comunitarismo que salienta a importância dos ‘todos’ nos quais que todos os indivíduos seriam iguais. Parte-se assim, por um lado, do conceito de indivíduo absolutamente livre e autónomo; por outro lado, o conceito de ‘informação pública’ e de ‘ideia platónica’ salienta realidade dos ‘todos’. Talvez que esses autores não tenham detectado aí qualquer contradição. Ou talvez, como parece ser a posição de Rheingold, se suponha, talvez com a ajuda de um qualquer automatismo tecnológico, que a realização ética individual coincide com o ponto de vista comunitário. O problema consiste obviamente na eventualidade da premissa ética não se verificar, podendo então existir um conflito com o ponto de vista comunitário que à partida foi assumido. E se esse conflito existir, pode julgar-se que deverá ser a Comunidade supostamente emergente dos acordos individuais - mas que na realidade é uma entidade platónica supra-individual – a decidir a ética a ser seguida (por exemplo, não receber dinheiro pela sua propriedade intelectual, precisamente...). E a única coisa certa é que, no mundo digital ou não, essa comunidade platónica será na realidade formada por indivíduos.

Mais profundamente, existe aqui um paralogismo. Para que o conceito de ‘informação pública’, de ‘indivíduo comunicante’ completamente virado para o exterior, não dissolva completamente a ideia de indivíduo autónomo, para que individualismo e comunitarismo possam de algum modo ser compatíveis, tem de se supor que o todo emerge das tocas individuais e livres de informação sem no entanto deixar de estar também completamente presente em cada consciência individual. Os activistas on line não encontravam essa possibilidade de reconciliar ‘indivíduo’ e ‘comunidade’ apenas no exemplo das comunidades on-line da Internet. Eles também se inspiraram explicitamente nas novas ciências da complexidade e da auto-organização[4]. Ora, essas teorias mostram que a emergência de ‘todos’ tem características bem diferentes das acabadas de referir. Elas mostram como, efectivamente e em muitos casos, a interacção local e não linear de um grande número de elementos faz emergir uma regularidade ou ordem global (um ‘todo’). Só que a aplicação dessa ideia a sistemas sociais torna perfeitamente claro que o todo jamais está presente em qualquer consciência individual; ele é o efeito não intencional de cada consciência individual e apenas pode ser representado por algo que se torna exterior às interacções locais dos indivíduos. A ordem global não é recapitulável, nem pode ser antecipada, por qualquer consciência individual; do ponto de vista das consciências individuais, não existe qualquer garantia de convergência. De forma rigorosa, pode-se dizer que, nas estruturas auto-organizadas e acentradas, apenas as acções locais são reais; já o todo pode ser considerado, por relação às acções reais, uma entidade virtual, jamais representável a partir de um ponto de vista local do sistema. A emergência do ‘todo’ não resulta aí de qualquer ‘sentimento do todo’ ou Eu colectivo existente em cada indivíduo, e menos ainda produz necessariamente algo mais ‘eficiente’ e ‘melhor’ (cf. C. Alves, Machuco Rosa e A. Antão in Interact,http://www.cecl.pt/interact/index.html para a análise detalhada de um exemplo). Isso mostra que o paralogismo implícito nas ideias de organizações como a EFF consiste em tornar imanente a cada indivíduo aquilo que, de acordo com o modelo, lhe é transcendente, não representável. Operando o paralogismo, os níveis ‘comunidade’ e ‘indivíduo’ tornam-se então ambos identicamente reais. Insensivelmente, o acentrismo típico da cibercultura procede a uma singular inversão das perspectivas. É como se, novamente, uma certa visão a priori de uma totalidade devesse determinar os comportamentos locais (não existir propriedade intelectual, ou certas e muito particulares normas de ‘etiqueta’ e de ‘ética’ existentes em muitas sub-redes da Internet), num movimento que se torna uma ideologia global, com todas as possíveis consequências decorrentes de qualquer tipo de ideologia.

Dimensões Políticas do Ciberespaço

Na acepção até agora considerada, o espaço cibernético foi considerado como um espaço de comunicação mediada por computador e a partir da qual é suposto emergir um todo comunitário. Mas o conceito de espaço cibernético possui um sentido um pouco mais preciso quando se coloca em destaque a sua dimensão explicitamente política. Um dos maiores méritos da EFF foi ter sido talvez a primeira organização a pensar esse novo tipo de espaço político, bem como as limites de aplicação de alguns conceitos jurídicos nesse novo ambiente. Algumas das propostas que a EFF defendia no início dos anos noventa são ainda hoje em excelente ponto de partida para a discussão da regulação das redes de computadores, como sucedia quando a organização defendia que a Internet devia seguir ‘o modelo de uma plataforma aberta que seja uma infra-estrutura global de comunicação e que forneça acesso não discriminado, baseado em standards abertos, privados, e livre de regulação asfixiante’.

Esse tipo de posições era, como sempre, acompanhado pela ideologia que julga ver numa tecnologia como a Internet o mecanismo capaz de eliminar definitivamente qualquer exterioridade aos indivíduos. Uma dessas exterioridades seria o Estado-Nação e os seus diversos governos.

Por exemplo, um dos membros da EFF escrevia:

...o mundo electrónico, concebido para resistir a um ataque nuclear, pode igualmente ser indiferente à regulamentação governamental. Devido ao seu alcance global e ao seu design descentralizado ele não é policiável. (John Gilmore)

O raciocínio era o seguinte. O algoritmo de transmissão da informação digitalizada através das redes de computadores, o package-switching, foi criado por P. Baran nos anos sessenta. Visto tratar-se de um algoritmo acentrado e distribuído, que não supõe a existência de um ponto central de controle por onde a informação tem de passar, a possibilidade de controlo por essa entidade supostamente transcendente aos indivíduos (o governo) não existiria. Obviamente que o raciocínio é falacioso, porque mesmo se o package-switching é um algoritmo acentrado, isso não impede que o controle não possa ser feito no nível superior dos protocolos da rede. Mas deixemos por agora esse ponto de lado. O importante é que as redes de computadores fariam com que ‘o governo se torne obsoleto pelo carregar no botão, pela democracia interactiva que uma Plataforma Aberta poderá criar (Esther Dyson, in Wired, Maio de 1995).

Temos pois a dualidade entre dois espaços, uma dualidade mais uma vez paralela à dualidade informação /realidade física. Um, o espaço territorial governado e delimitado pelo Estado-Nação. O outro, o espaço cibernético, que seria a ‘Terra-Mãe da Informação’ e que escaparia ao controlo dos Estados. Como os textos da EFF produzidos nessa época atestam, existia a clara consciência de uma possível ‘colisão entre a Sociedade e o Espaço Cibernético’. Contudo, a ideia de base era que, devido à sua arquitectura tecnológica, a Internet impediria que a ‘sociedade territorial’ controlasse o espaço cibernético – se existisse, esse controle significaria muito precisamente o desaparecimento do próprio conceito de espaço cibernético.

Não seriam apenas a características do design do espaço cibernético que não o tornariam policiável. Como a citação de J. Gilmore refere, a sua natureza ‘libertadora’ decorreria igualmente do seu ‘alcance global’, isto é, o espaço cibernético é por natureza transterritorial. Ele passa ao lado da fonte ancestral de ordenamento jurídico, o conceito de território físico limitado por certas fronteiras com realidade legal. Obtemos agora uma definição mais precisa do espaço cibernético: ele consiste em interacções não físicas com um alcance global e não segmentadas por fronteiras territoriais.

Não interessa fazer críticas fáceis a estas posições. Deve voltar a sublinhar-se que o conceito de espaço cibernético está longe de ser uma ilusão. Ele coloca questões bem precisas acerca do quadro normativo e legal delimitando o número crescente de actividade que se desenrolam via redes de computadores. As posições EFF traduzem uma experiência efectiva e uma situação real da rede que em larga medida ainda é a actual.

No entanto, a crítica tem novamente de ser levada a cabo, se bem que por outras vias. Desde logo, e como já se referiu, afirmar-se que a Internet passaria ao lado da ‘sociedade territorial’ devido à natureza do package-swithing não faz evidentemente muito sentido, pois, a existir ou não controlo, ele deverá começar a processar-se ao nível dos protocolos que se tornaram standards da Internet, a começar pelo actualmente standard de base, o TCP/IP. Mais exactamente, se situarmos a questão do controlo no seu nível correcto, o dos protocolos, é importante ver que as posições iniciais da EFF podem ser descritas como essencialistas e não evolutivas. Essas posições são estritamente paralelas à ‘metafísica das essências’ e da ‘natureza intrinsecamente comunicante’ de Rheingold.

Isso é claro se retivermos da citação de Gilmore a ideia geral que a arquitectura da Internet possuiria certas características intrínsecas, essenciais, necessárias, que tornariam o controlo impossível. A ausência de controlo seria uma consequência inevitável de automatismos tecnológicos. Mas, como L. Lessig sublinhou insistentemente, a arquitectura específica da Internet até, digamos um tanto arbitrariamente, 1995, nada tem de necessária. Desse ponto de vista, o erro da ideia expressa por Gilmore e partilhada por muitos outros (cf. as citações na compilação feita por Joseph Reagle) reside em supor que a arquitectura da Internet em 1995 (ou mesmo ainda hoje) é algo dado, uma sua natureza intrínseca que jamais poderá ser de outra forma. Se assim fosse, se essa arquitectura fosse necessária, poder-se-ia sustentar em parte (mas apenas em parte, pois cada computador ligado à Internet possui um endereço IP, o qual permite relacionar essa máquina com o seu utilizador, e assim possibilitar algum controlo sobre as actividades que este leva a cabo) que a Internet poderia determinar aquilo que se assume à partida ser um processo de emancipação.

Só que a premissa é falsa. Não existe nada de ‘dado’ na arquitectura da Internet. Recordemos que essa arquitectura se baseia em protocolos abertos e públicos, entre os quais o TCP/IP ou o HTTP. O acesso à rede também foi, durante bastante tempo, completamente aberto, não regulamentado. Mas nada obrigou a que, por exemplo, o TCP/IP tivesse as características que permite que a Internet seja uma rede aberta. Esse resultado foi uma consequência de uma decisão explícita dos designers da rede. Esse ponto é fundamental pelo que devemos esclarecê-lo melhor.

O que caracteriza as tecnologias da informação? Existe muita ambiguidade a esse respeito, e muita dela é devida à própria ambiguidade da palavra ‘informação’. Podemos propor aqui não tanto uma nova definição mas o que pode ser considerada uma característica marcante das tecnologias da informação. Pela menos em parte, ela pode servir como um critério de demarcação das tecnologias da informação face às tecnologias da matéria e da energia. É aproximadamente rigoroso, pelo menos num sentido relativamente restrito, afirmar que as tecnologias da informação são constituídas por software, o qual pode ser implementado em máquinas. Isso distingue-as das tecnologias da matéria e da energia – mas naturalmente que não estamos negar que estas possam vir a incorporar cada vez mais software, como certamente continuará suceder. Essa distinção pode estar associada a uma outra. As tecnologias da informação envolvem valores socio-políticos como uma sua possibilidade intrínseca. Escrevemos ‘intrínseca’ para sublinhar o facto de esses valores poderem estar presentes na própria concepção da tecnologia. Eles estão literalmente nela escritos. Estão escritos no seu código fonte. Aí podem ser escritas coisas. Valores. O design de uma rede envolve conjuntos de valores.

Quando se afirma que as tecnologias da informação envolvem intrinsecamente valores no seu design não se está a recair no essencialismo tecnológico, pois daí não se infere logicamente que tipo de valores elas envolvem. Elas envolvem a possibilidade indeterminada de valores mas não envolvem necessariamente este ou aquele valor específico. São instáveis por relações a valores específicos. Esse ponto constitui uma refutação directa daqueles que afirmam que uma tecnologia como a Internet envolveria intrinsecamente certos valores que gerariam um certo tipo de sociedade. Esses valores estariam inscritos, por exemplo, no TCP/IP. O TCP/IP parece não envolver valores, mas na realidade envolve-os. Envolve-os, utilizando um termo de informática perfeitamente adaptado ao presente contexto, por default. O TCP/IP é um standard aberto completamente indiferente à natureza específica da informação que corre sobre ele. Ele não distingue as aplicações específicas que correm sobre ele. O TCP/IP apenas permite que as máquinas comuniquem e troquem bits entre si, qualquer que seja a arquitectura específica que estes possuam. Mas a própria arquitectura do TCP/IP não é uma sua característica intrínseca, necessariamente dada. Quanto o conceberam, os engenheiros informáticos poderiam perfeitamente ter escrito o seu código de forma a, por exemplo, filtrar um certo tipo de informação. As possibilidades são imensas. Isso não sucedeu porque pessoas como Robert Khan (um dos criadores desse protocolo) não quiseram. Portanto, quando se afirma que tecnologias da informação como a Internet envolvem valores não se quer dizer que eles foram lá postos por Deus, ou que eles são uma sua natureza ‘automática’. Existem decisões que determinam a arquitectura da rede, e se a rede garante ou não a ausência do controlo isso não se deve a qualquer automatismo tecnológico mas sim às decisões que previamente foram tomadas. São os valores nelas envolvidos que determinam a arquitectura, e não a inversa. Um dos fundadores da EFF escreveu:

‘Architecture is politics.’ M. Kapor

O que capta efectivamente um ponto essencial, mas que pode equivocar se não se mantiver presente a instabilidade das arquitecturas baseadas em software, isto é, se se supuser que os valores escritos no código têm de ser necessariamente de um certo tipo. A EFF parece não se ter apercebido que estava a falar da Internet com o tipo de código que determinava a rede em 1995 (e em larga medida ainda determina hoje). Mas nada obriga a que a rede mantenha essas características de abertura e livre acesso. O código pode ser mudado, podem ser escritos e adaptados novos protocolos, pode ser escrito novo código por cima dos protocolos existentes. E isso pode modificar a arquitectura da tecnologia tal como L. Lessig insistiu. Pode-se efectivamente sustentar que, devido a um conjunto de pressões, tais como a necessidade em resolver o problema da gestão do recurso relativamente escasso que são os endereços IP, ou então devido a razões comerciais (por exemplo, a partilha de receitas entre os múltiplos IPO’s por onde uma mensagem passa) se desenvolverão novos protocolos, como, por exemplo, o actual projecto IPV6 [actualmente o IP é IPV4]. Por outro lado, nada impede que comecem a surgir cada vez mais programas que, de forma invisível, obtêm um considerável informação sobre os utilizadores. Os exemplos poderiam ser multiplicados.

Conclui-se portanto ser um equívoco sustentar que as tecnologias, em particular as tecnologias das redes de computadores, possuem uma natureza que se propagam automaticamente para uma certa concepção do social.. É como se os defensores de uma tal perspectiva ‘libertadora’ se deixassem capturar por uma exterioridade no exacto momento em que estão animados pelo desejo de negar qualquer exterioridade. Na verdade, se a tecnologia imporia o desaparecimento de uma ordem transcendente aos indivíduos, é a própria tecnologia, na medida em que é automática e independente da vontade de qualquer um, que surge como uma nova fonte de ordem exterior. A crença é que essa exterioridade tem na sua natureza a convergência para um ponto fixo estável único, o qual é ‘bom’. Mas já se viu que nada o garante, pois as tecnologias são, no que à estrutura social diz respeito, instáveis.

O Estado perante o espaço cibernético

Para terminar este percurso através de algumas das ideias força da cibercultura acerca do espaço cibernético retornemos à questão do Estado. Ela pode agora ser abordada referindo sumariamente que uma análise detalhada da questão dos standards característicos das tecnologias da informação mostraria que eles estão sujeitos ao princípio designado por externalidades em rede, segundo o qual o valor de uma rede aumenta exponencialmente com o número dos seus utilizadores. Esse princípio foi teorizado rigorosamente por W. Brian Arthur, e como o caso Microsoft versus USA mostra, a sua dinâmica induz quase inevitavelmente a formação de monopólios. Visto à luz da ideologia difundida durante a década de noventa a propósito desse tipo de tecnologias é um resultado que não pode deixar de surpreender! Assim sendo, os standards deverão ser públicos, e não detidos por uma empresa privada? (Recorde-se de novo a polémica em volta do Windows.) Mas quem o garante? Quem regula? Recordemos a parte final da citação de J. Gilmore

Devido ao seu alcance global e ao seu design descentralizado [a Internet] não é policiável.

O que coloca em definitivo a questão do Estado versus Internet. Devido ao seu caracter transterritorial e transnacional a Internet não poderia ser controlada por qualquer Estado específico. Está aqui pressuposta não apenas uma visão essencialista das tecnologias mas também uma visão essencialista e a-histórica da evolução do Estado. Também a natureza do Estado-Nação que se consolidou no século XX nada tem de necessária. Mais exactamente, o percurso evolutivo que, durante séculos, levou à figuração actual do Estado-Nação é ele próprio um excelente exemplo de um mecanismo de retroacção positiva desembocando na formação desse monopólio específico a que se chama ‘Estado’ e que acabou por abarcar a quase totalidade de cada vida quotidiana. É nesse contexto que faz sentido falar em standards públicos. A intervenção do Estado como regulador seria necessária a fim de garantir carácter aberto e público dos standards da Internet, garantindo não apenas valores como as da privacidade mas igualmente a continuação da inovação necessária ao desenvolvimento das redes de computadores.

Mas que tipo de Estado? O Estado é um monopólio, e a ideia dos primeiros activistas on line era que ele não poderia estender esse monopólio à Internet. Pois, a ideia é sempre a mesma, existiriam tecnologias que não o permitiriam. Por exemplo, a criptografia. Segundo o cyberpunk Tim May, autor do ‘manifesto Cripto-Anarquista’ e da Black Net, a criptografia tem um alcance social bastante vasto pois ‘alterará de modo fundamental a natureza das empresas e da interferência do governo nas transações económicas’[5]. Ela garantiria esse ideal que é o anonimato completo. É portanto certo que o Estado procurará deter a difusão dessa tecnologia. Contudo, segundo May, trata-se de uma causa perdida, pois a ‘cripto anarquia’ é inevitável; mesmo se ‘não existe qualquer hipótese de ela ser implementável pelos políticos’, ‘ela será implementável pela tecnologia ela própria, o que já está sucedendo’[6], isto é, certos mecanismos tecnológicos conduzirão automaticamente a uma alteração ‘boa’ do social, levando a que ‘os Estados-Nação, as leis de exportação, as leis de patentes, as considerações de segurança nacional e outras que tal sejam relíquias da era pré-cibernética’[7].

De certeza? Se algo que a análise da evolução da natureza do Estado mostra é que em média o número de ‘estados’ diminuiu, fenómeno no entanto acompanhado por um aumento do alcance geográfico e funcional de cada um. Como se referiu, o Estado consolidou-se como um monopólio cada vez mais abrangente. Ora, é efectivamente verdade que uma rede transnacional como a Internet coloca novos desafios ao velho Estado-Nação. A regulação dos protocolos da Internet tem sido levada a cabo por organizações não governamentais tais como o W3W. Um conjunto de factores pode levar a que a situação se altere. Por outro lado, não é crível que a criptografia se desenvolva inteiramente segundo as linhas defendidas por May. Não é crível que, como de facto vem sucedendo, o Estado deixe de produzir legislação aplicável à Internet. Mas como a Internet é efectivamente uma rede global muita da legislação e intervenção dos Estados terá ser concertada, e isso permitir-lhes-á manter o poder e o monopólio. Os Estados cooperarão entre si. Avaliada desse ponto de vista, a Internet será apenas mais um factor que impele os Estados a formarem cartéis, começando por cartéis regionais. Aos desafios da chamada ‘globalização’ responde-se com a emergência de instituições elas próprias com um alcance funcional cada vez mais global. Pois se diversos monopólios vêm o alcance do seu raio de acção em risco, a tendência inevitável é que eles se associem formando um monopólio ainda maior. A ser assim, e de acordo com alguns dos pontos salientados pela EFF, mas num sentido completamente oposto ao que a organização esperaria, a Internet cumprirá de facto o seu papel de agente de mutação social e política.


[1] Cf., por exemplo, o relato de humdog, ‘pandora’s cox: on community in cyberspace, in P. Ludlow (ed.), High Noon on the Electronic Frontier, Mit Press, Cambridge, 1996, pp. 437-444.

[2] J. P. Barlow termina um texto fundamental, referindo que “the thoughts in it have not been ‘mine’ alone (aspas no original) (J. P. Barlow,, ‘Selling Wine without Bottles: The Economy of Mind on the Global Net’ in P. Ludlow (ed.), High Noon on the Electronic Frontier, Mit Press, Cambridge, 1996., p. 34)

[3] Idem, p. 21

[4] Cf.., pr exemplo, K. Kelly, Out of Control, Wesley, Reading, 1995.

[5] Tim May, ‘Introduction to the Black Net’, in P. Ludlow (ed.), op. cit., p. 238.

[6] May, Ibidem, p. 200.

[7] May, Ibidem, , p. 241.