Numa sala enorme, totalmente fechada e pintada
de cinza claro, que se vê de cima através de uma larga
janela, como se num écran, Miguel Palma montou uma gigantesca
pista de brincar, em que apenas um pequeno automóvel amarelo
circula, ininterruptamente.
Miguel Palma habituou-nos, ao longo de uma obra longa e subtil,
a este convívio com a figura, moderna por excelência,
do automóvel. Muitas obras suas o integraram como uma espécie
de personagem conceptual (Deleuze), ou de imagem de marca de uma
poética marcada pelos signos da contemporaneidade.
Neste caso, a presença do pequeno automóvel
não se destina tanto a cingir o reforço dessa imagem,
como a desencadear a evidência de uma paisagem actual (na
evocação de uma estrada que não conduz a parte
alguma ), (des)habitada por um pathos de solidão e de vazio
existencial.
O pequeno automóvel amarelo figura-se
assim no âmbito de uma dramaturgia do negativo, como em alguns
textos de Beckett, como portador de uma imagem de abandono e de
não-sentido, que não pode deixar de ser recepcionada
senão como meditação amarga, breve, quase minoritária,
de um destino de esvaziamento gerado pela disforia que se opõe,
como par inevitável, à imagem de euforia do espectáculo
e do mercado na sociedade actual.
Imagem triste, então, a de Miguel Palma,
que tem um poder de síntese notável e cuja referência
é mais cinematográfica do que plástica, aproximando-se
mais da poética de um Antonioni do que de qualquer outra
referência na arte recente. Digamo-lo sem rodeios, a imagem
que Palma nos propõe encena a morte. Não tanto a morte
quotidiana do acidente (em que se poderia pensar, ao nível
do exemplo, em Crash, de Cronenberg/Ballard), mas antes essa morte
que habita a própria vida como sombra ou como marca de melancolia,
indissociável dela, seu outro lado sempre presente como inscrição
de um vazio que a vida não chega para delimitar.
A morte é esse outro lado escondido
da vida que a interpela e que lhe dá um sentido ao inscrevê-la
na temporalidade consignada pela finitude. É a partir desta
consciência que o humano acede ao humano, sendo capaz de se
figurar e de se pensar como ser na história cuja acção
tem um sentido transformador quer no plano colectivo quer no individual.
Ser capaz de colocar no plano das imagens esta relação
decisiva e as formas da sua consciência foi, desde sempre,
a razão de ser da própria arte.
O que nos poderia conduzir a uma outra meditação,
quiçá reflexa de outras obras da paisagem artística
recente, capaz de reflectir a impossibilidade de uma arte verdadeiramente
não representativa ou desligada da sua função
simbolizadora. Penso sobretudo, neste caso, na Teoria da Vanguarda
tal como nos foi proposta na obra de um autor como Peter Burger,
que procurou dissociar da arte progressiva não apenas a representação
(questão equívoca a que valerá a pena voltar)
como também a própria acção de simbolização.
Com efeito Burger, na linha de Adorno, pretende
fazer da representação uma simples marca do que chama
a arte burguesa (em que as partes se não distinguém
do todo, mutuamente se explicando, numa esfera de totalidade), convindo
em que a função simbolizadora deverá constituir-se
como um limite que a obra de arte que se pretender actual e não-burguesa
jamais deverá franquear, sob pena de continuar a tradição
institucional da arte.
Ora o que pretendo sustentar é que,
para além da pouca clareza do conceito "arte burguesa" (que
suponho referir-se, segundo o modelo marxiano de interpretação,
a toda aquela que não vem colocar em questão a chamada
ordemestabelecida) seja isso o que for (e, mais em geral, o que
o próprio Marx designou por alienação), Burger
se equivoca na sua pretensão a excluir o simbólico
da esfera de acção artística.
No que se refere à questão da
representação, convirá considerar-se que toda
a arte não-representativa que se quis produzir no último
quartel do século XX , bem como a primeira tentativa de des-representação
operada pelos dadaístas, cai inevitavelmente na esfera do
representativo assim que integra qualquer modelo de reprodução,
seja este o da sua imagem fotográfica num catálogo
ou o próprio museu.
A reprodução, com efeito, e como
tentei demonstrar noutro lugar, tem ela mesma um efeito não
apenas representativo como até aurático.
A fotografia ou o filme que documentam uma
acção artística efémera, por muito radical
que ela tenha sido no momento do seu acontecimento, remetem imediatamente
para um espaço de representação quando transformam
o que antes foi acontecimento singular numa representação
mediada desse mesmo acontecimento.
Por outro lado, a sua própria inscrição
num espaço artístico só pode fazer-se pela
mediação legitimadora que o próprio campo da
arte fornece, pelo que julgo ser indissociável o fenómeno
artístico, ao contrário do que pretende Burger, quer
da sua representação quer da sua pertença intransponível
à instituição artística. Nem de outro
modo fenómenos como o dadaismo poderiam ser pensados relativamente
à sua acção e importância no interior
das formas históricas da arte.
No que se refere à questão do
simbólico, julgo que também aí Burger se equivoca,
uma vez que a única esfera de acção sustentável
para a arte que não se limite à sua inscrição
na ordem geral da mercadoria, terá necessariamente que se
forjar a partir de uma capacidade de simbolização.
Sem o que o poder da sua acção
e do seu reconhecimento, isto é, da sua legitimidade, se
verá inevitavelmente detido por forças estranhas às
da própria arte. É o caso da artisticidade das formas
mais actuais do marketing ou da publicidade que pretendem substituir-se,
no mero plano de uma valia esteticizada, às formas críticas
da arte, por impuras que estas sejam.
A questão hegeliano-marxista da morte
da arte, evidencia-se assim na sua pouca consequência enquanto
referente de uma acção libertadora.
Pelo contrário, e embora seja verdade
que a pós-modernidade esvaziou um pouco o sentido da crítica
ao inibir a historicidade como critério, a arte permanece
como um dos horizontes mais complexos, e também mais necessários,
para figurar a construção de um humano libertado e
projectado na dimensão utópica de um devir diverso
daquele que a paisagem actual configura. É precisamente a
este nível que as recentes tentativas dos autores marxistas
mostram a sua imensa fragilidade, por se demonstrarem incapazes
de desenhar um espaço em que se pense o homem para além
da estrutura numa dimensão totalizadora da sua experiência
como ser livre e autor dos seus próprios
destinos.
A arte actual que se pretende inscrita pelos
sinais do político, isto é, de um pensamento capaz
de reflectir criticamente a relação entre arte e vida,
é precisamente aquela que não denega a sua capacidade
para simbolizar ainda que se socorra, para se figurar, de formas,
de técnicas e de processos que escapam, pela sua natureza,
a todas aquelas que se revelaram já experimentadas e portanto
já não susceptíveis de serem portadoras de
um sentido de devir em transformação do actual.
A obra de Miguel Palma que serviu de pretexto a estas notas, pelo
contrário, age para além do obscurantismo reinscrevendo
uma função crítica precisamente na medida em
que assume integrar formas de simbolização e em que
aceita dialogar com esse espaço de representação
a que ainda hoje chamamos arte.
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