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  O que é uma imagem? A propósito do cinema de Harun Farocki

  [ Susana Nascimento Duarte ]

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 A retrospectiva da obra de Harun Farocki, apresentada no âmbito do Festival Vídeo Lisboa entre 20 e 23 de Novembro, é o ponto de partida e o pretexto deste texto que, à imagem daquela, não pretende constituir-se como um percurso exaustivo pela filmografia do realizador, mas antes deter-se nalgumas das obras que mais sintomaticamente dão a ver a matéria de que é feito o seu território de preocupações e reflexões.

Contemporâneo do nascimento do novo cinema alemão, os seus primeiros filmes  remontam ao início dos anos sessenta, e encetam formalmente uma contestação da retórica cinematográfica de então, refém das formatações televisivas e dos códigos de narração subj ac entes a uma certa concepção da ficção dependente da indústria cinematográfica de entretenimento.  A esta esterilidade das formas de representação cinematográfica, e no sentido da sua reinvenção, Farocki contrapõe um cinema militante, fazendo ressaltar o vazio dos circuitos de imagens. Norteado pelas referências de Godard e dos situ ac ionistas, nestes primeiros filmes de carácter marcadamente panfletário (de que o exemplo mais emblemático é Nicht Loschbares Feuer (Inextinguishable Fire) (1969), filme-manifesto contra o napalm) começa já a insinuar-se, embora ainda de um modo relativamente implícito, a zona de reflexão que focalizará toda a obra de Farocki, e em função da qual é possível auscultar toda a dimensão de intervenção política do seu pensamento e da sua materialização em imagens.

Parafraseando Giorgio Agamben a propósito do cinema de Guy Debord, toda a criação farockiana vai no sentido de des-criar o real, de resistir ao f ac to que lá está, impedindo que o medium desapareça naquilo que nos dá a ver[1]. Os filmes de Farocki perseguem essa indissociabilidade entre o ac to expressivo e os modos de produção dessa expressão, o medium, a imagem, mostrando-se enquanto tal; não dando a ver, mas dando-se a ver, num movimento que nos conduz da coisa representada à sua representação.      

O plano de reflexão dominante que percorre todos os filmes de Farocki, e que se estende também aos seus escritos, uns sendo muitas vezes o prolongamento dos outros, concentra-se e expande-se em torno da questão “o que é uma imagem?”, e toda a meditação suscitada é inseparável de um trabalho crítico de investigação e desmontagem das redes de discurso e significação que investem as imagens nos seus diferentes modos de aparecer.

Nos seus filmes, “as inter ac ções sociais entre a guerra, a a economia e a política” esboçam-se no interior  e à luz de uma “história audiovisual da civilização e das técnicas”[2]. Trata-se de mostrar a história da progressiva mediatização em imagens de todas as ac tividades humanas,  que se traduz, no caso de Farocki, numa atenção particular às condições de produção dessas mesmas imagens, bem como ao modo como os media mobilizam e investem de forma invisível os corpos, determinando a arquitectura do real onde aqueles se vão inscrever. Farocki empreende uma arqueologia das relações entre o corpo e as máquinas e mostra o que ac ontece aos corpos quando capturados por dispositivos maquínicos.

Dando a ver o corpo taylorisado, o corpo vigiado, filmando autómatos e simulações[3], o que Farocki  torna sensível são as necessidades de produção contemporânea de corpos ao alcance da intervenção tecnológica, tudo (das sensações, às emoções e aos afectos) sendo passível de ser transformado em grandezas de ex ac titude empírica, com efeitos na determinação do funcionamento e controlo dos corpos nas suas múltiplas aplicações – o corpo do soldado, do trabalhador, do consumidor, do prisioneiro…

A reflexão teórica sobre o fenómeno destes corpos,  é indissociável de uma reflexão sobre os próprios meios de que Farocki se serve para sobre eles reflectir - os meios cinematográficos, a fotografia, as imagens vídeo e digitais. Através de um trabalho quase táctil sobre o material audiovisual de que se serve,  e que se constitui muitas vezes de imagens já existentes por ele apropriadas, a análise das iconografias dos corpos transforma-se também numa análise da sua “mise en image”, que conduz das imagens aos contextos que lhes deram origem.

É o que se passa com as progressivas desquadragens e repetições a que vota as imagens de estrelas pornográficas de revistas, em Wie man Sieht (As you see) (1986),  trazendo assim à visibilidade o “ser imagem” daquelas imagens, ou seja, revelando por detrás do regime de visualidade da indústria pornográfica, o sentido primeiro da sua produção. Da contraposição do rápido consumo de imagens à tranquilidade do seu exame isolado, o que se liberta não é o que as imagem dão a ver,  mas neste caso o movimento de reprodução serial e de fragmentação dos corpos em que se sustenta a fabricação do corpo qualquer pornográfico (aproximado, neste mesmo filme, do corpo qualquer do soldado).  Isto é, o olhar, os olhos são implicados na imagem não só numa relação ao objecto representado, mas também  ao ac to de representação, a imagem exibindo-se, assim, enquanto tal,  enquanto  “zona de indecidibilidade  entre o verdadeiro e o falso”[4].

A nova visibilidade que o mundo adquiriu depois da fotografia e do cinema arrasta consigo a perca de inocência da visão f ac e a qualquer imagem. O pressuposto do olho esclarecido herdado do Iluminismo, responsável por uma  concepção ilusória de que as imagens dos media visariam ainda a representação de uma realidade pré-fílmica, no que seria um contributo para o conhecimento aprofundado e informado da mesma, não é mais possível e tem de ser contrariado criticamente: assim, em Bilder der welt und Inschrift des Krieges (Images of world and the inscription of war) (1988), o termo Aufklarung é usado na sua dupla ac epção de termo oriundo da filosofia e da história das ideias e de termo que se refere igualmente ao reconhecimento aéreo militar, para reflectir sobre os paradoxos de uma crescente vontade de iluminação generalizada, sobretudo na sua versão de ordem técnica, com raízes num quadro epistemológico determinado pelo desejo de tudo ver, de tudo saber, pelo equívoco de que a razão,  versão humana do olho de Deus, instrumentalizando o progresso tecnológico, seria capaz de “ver” sempre mais e melhor.

De f ac to, este filme analisando imagens da topometria e imagens de vigilância na sua diversidade de suportes e de contextos históricos, organiza-se em torno de uma zona cega inerente à virtualidade mortal do fotográfico[5] que prefigura, para além da fotografia, a impotência genérica das ac tuais imagens produzidas pelos dispositivos técnicos de percepção que, num crescendo de sofisticação, determinam uma óptica global  estratégica de controlo do território.

Bilder der welt und Inschrift des Krieges retoma através de sucessivos reenquadramentos, a vários tempos, uma fotografia aérea de Auschwitz tirada pelos aliados: em Abril de 1944, pilotos americanos sobrevoam a Silésia à procura de uma fábrica de armamentos e registam fotografias de reconhecimento. De regresso a Inglaterra, os analistas identificam os alvos industriais, mas não vêem os telhados dos barr ac ões e as câmaras de gás de Auschwitz. Esta fotografia antecipa “a desrealização crescente do esforço militar, em que a imagem se prepara para prevalecer sobre o objecto”[6]. Com efeito, a excessiva visibilidade desde logo permitida pelo alcance óptico da fotografia aérea esbarra com uma dissimulação muito mais radical do que a encetada pelo inimigo para evitar que “o percebido seja sinónimo de imediatamente perdido”[7] – aquela que resulta de uma incap ac idade para ver o que a fotografia objectivamente contém, mas o olho não está preparado para reconhecer.

Evidenciando as linhas de vizinhança que o trabalho de Farocki partilha com o pensamento de Paul Virilio, Bilder der welt und Inschrift des Krieges é um  filme sobre a zona cega das imagens de vigilância, incapazes de interditar o ac idente, de identificar todas as ameaças. Neste sentido, é um filme que, na sua anterioridade, é contemporâneo da era  pós 11 de Setembro.

O que Virilio apelidou de logística da percepção, Farocki vai cartografá-la nas suas ocorrências materiais, não só no modo como se foi desenvolvendo e traduzindo na esfera originária da guerra culminando hoje numa espécie de televigilância que se expressa em imagens da mais variada natureza, mas também como se foi disseminando pelos restantes territórios, numa crítica, que se prolonga até à sua última instalação, Auge/Maschine (Eye/M ac hine) (2001), à substituição do homem por máquinas perceptivas cada vez mais fléxiveis, que automatizam a percepção e desimplicam o humano de onde sempre foi incómodo mostrá-lo – no trabalho e na guerra -, e trabalham no sentido da administração e controlo de todos os campos da vida.

De f ac to, o controlo de tudo o que mexe através de máquinas de visão integradas em satélites inteligentes, que dobram em tempo real e de forma imediata a realidade, permitindo determinar ponto por ponto, a cada momento, o território inimigo, vai de par, como refere Virilio, com uma política de percepção e uma colonização do olhar que, tendo na televisão um canal privilegiado, procura domesticar as re ac ções e emoções dos consumidores-espectadores, fazendo parte do mesmo programa de abstr ac ção do mundo em que este desaparece virtualmente sob as suas imagens.

Os filmes de Farocki mostram essa transformação do mundo em imagem e literalmente pela imagem: é sobre a imagem e em função dela que se age. Daí a necessidade de construção de “laboratórios de imagem”, de simulações como as que se mostram no filme Die Schopfer der Einkaufswelten (The Creators of the Shopping Worlds) (2001) e que tentam esgotar, no sentido de os prever, todos os gestos possíveis do futuro consumidor dos espaços comerciais em projecção, num esforço para condicionar cada gesto ac tual, esboçado na realidade, a encaixar, a ir ao encontro dos quadros previstos pela simulação do real; a realidade ac olherá, assim, um gesto desde logo constrangido na sua aparente liberdade. É no território da imagem virtual, simulada, que a realidade se enforma, que se determina a arquitectura do real. Esta desenha-se na expectativa de responder e coincidir o mais possível com a sua simulação. É a  sua simulação que a determina e não o contrário. Age-se sobre a imagem e não mais directamente sobre o real, à distância, evitando o cont ac to e a proximidade. As imagens não são mais representações de um real que lhes pré-existe, elas são simulações de um real que as irá decalcar.

A escrita fílmica de Farocki assume-se, assim, como um trabalho de arqueologia sobre as constelações de imagens e as suas transformações, sobre os discursos que as fundam, recombinando fragmentos e textos de proveniência diversa, da sua junção e confronto irrompendo um terceiro espaço, uma nova imagem, que funciona como a imagem dialéctica, descrita por Benjamin.

Com efeito, em filmes como Videogramme einer revolution (Videograms of a revolution) (1992) e Arbeiter verlassen die Fabrik (Workers leaving the f ac tory) (1995), exclusivamente constituídos de apropriações de imagens já existentes (no primeiro caso imagens da televisão e de câmaras de vídeo amadoras registando o advento da revolução romena; no segundo imagens do cinema, que retomam o motivo da saída da fábrica dos irmãos Lumière, estruturando-se à sua volta) trata-se de dar a ver a relação de reversibilidade que se estabelece entre o passado e o presente, entre a carga histórica da imagem e o seu reencontro com o agora da sua apreensão.

Mesmo as imagens directamente filmadas por Farocki enquadram-se num espírito de forte consciência da natureza em segundo grau das imagens, de análise da ideia de reproductibilidade contida  nas imagens que medeiam o espaço público, entendidas como a própria matéria de que é feito o mundo.

Assim, nos seus filmes assistimos ao desenrolar do próprio processo do pensamento que se faz, que nasce, no entrelaçamento das matérias do cinema - o som e a imagem -, à medida do desfilar da película. Neles, a montagem trabalha não só a exploração das associações mentais que se libertam no intervalo da justaposição inesperada de duas imagens, por choque e aproximação, mas também a produção de uma visibilidade significante que decorre da retoma dessas mesmas imagens junto de outras imagens, desta circulação resultando um efeito de diferença e repetição, intensificado pelo trabalho da banda de som, que correndo autonomamente, comenta as imagens à distância.

Tal como na pedagogia godardiana e straubiana[8], Farocki reinventa as relações entre a imagem e a palavra, para fazer emergir da sua disjunção, do seu entre-dois, o pensamento de aprisionamento do olhar (o olhar não é livre, mas dirigível…), induzido e constrangido pela temporalidade e instantaneidade da montagem e do enquadramento car ac terísticos das imagens encenadas pela televisão e pelo cinema. Ao contrário da falsa proximidade de ordem técnica produzida pela imediaticidade do fluxo ac elerado de imagens dos media visuais, os procedimentos do dispositivo formal de Farocki, quando retomam estas mesmas imagens, introduzem nelas um efeito de ralenti, um efeito de paragem da imagem, possibilitando a instauração de uma distância reflexiva,  da distância como pré-requisito para ver e para pensar, para descobrir nas imagens o traço inscrito do pensamento que lhes deu origem.



[1] AGAMBEN, Giorgio; “Le cinéma de Guy Debord”, in Image et Mémoire, Hoebeke, 1998, pp. 74-75.
[2] BLUMLINGER, Christa; “HarunFarocki ou l’art de traiter les entre-deux”, in Harun Farocki. Reconnaître et Poursuivre, TH. TY., 2002, p. 13.
[3] C..f. BLUMLINGER, Christa; “HarunFarocki ou l’art de traiter les entre-deux”, in Harun Farocki. Reconnaître et Poursuivre, TH. TY., 2002, p. 13.
[4] AGAMBEN, Giorgio; “Le cinéma de Guy Debord”, in Image et Mémoire, Hoebeke, 1998, p.76.
[5] BLUMLINGER, Christa; “HarunFarocki ou l’art de traiter les entre-deux”, in Harun Farocki. Reconnaître et Poursuivre, TH. TY., 2002, p.14.
[6] c.f.VIRILIO, Paul;
[7] c.f.VIRILIO, Paul;
[8] C.f. DANEY, Serge; La rampe, Cahier du Cinéma-Gallimard, 1996,  pp. 78-85.