trans.gif (43 bytes) trans.gif (43 bytes)

  Matrix 3

  [ Inês Gil ]

trans.gif (43 bytes)
trans.gif (43 bytes)

 

 

 

A trilogia Matrix fecha com um filme que esquecera as suas propostas iniciais: a proposta de uma reflexão estilizada sobre o verdadeiro espaço da realidade, através de uma narrativa ambígua navegando entre o simulacro e o universo sensível. Com Matrix Revolutions, a expressão dos códigos dos jogos vídeo está inteiramente assumida. O sistema da narrativa clássica do cinema americano deixou de tomar como base a linearidade temporal e virou-se para a aparente complexidade da imagem virtual que consegue encaixar uma série de espaços um pouco à maneira das bonecas russas. A narrativa em “níveis”, cada vez mais utilizada no cinema, substitui, devagar, uma forma cinematográfica que esgotara as suas possibilidades (?).

Com a trilogia Matrix, o espectador tem que actualizar a sua percepção da realidade e adaptar-se à lógica virtual dos acontecimentos. Mas, no fundo, os verdadeiros códigos do cinema mainstream clássico continuam em vigor: entre as várias cenas de efeitos especiais requintados, insere-se os típicos clichés americanos, pseudo-filosóficos, pseudo-metafísicos. Além disso, os vários níveis da narrativa não deixam de ter uma forte relação de causalidade que, de novo, faz parte do sistema da indústria cinematográfica americana.

É óbvio que os vários Matrix obrigam a pensar sobre o papel da imagem na sociedade contemporânea e aflora o problema da iconoclastia[1]. O controlo exercitado pelas imagens nos indivíduos é extremamente perigoso em particular quando elas manipulam não só a sua percepção do mundo exterior, mas também o seu espaço interior (que arrisca em tornar-se virtual). A antecipação do virtual sobre o real induz a confusão na descodificação do sentido da própria realidade (os realizadores de Matrix, os Irmãos Wachowski, fazem sem dúvida referência ao muito mediatizado hiper-real de Baudrillard). Seria então necessário destruir o espaço da simulação (das imagens virtuais) que afasta o indivíduo da verdade e da liberdade, para que este consiga reencontrar a sua essência que se manifesta através da sua capacidade de amar[2].

O que é exprimido nas recentes narrativas em níveis é uma regressão infantil da dramaturgia; em Matrix Revolutions, os mundos tendem em prolongar-se. O mundo real dos dissidentes funciona como o mundo real do espectador que se enconcontra frente a um jogo vídeo e que destroi compulsivamente e massivemente as maquinas ameaçadoras. Para simular um código narrativo complexo, os Irmãos Wachowski introduziram um novo espaço, entre o real e o virtual, uma espécie de “intervalo” representando a passagem de um universo para o outro, ou mesmo de uma espécie de conceito para outro (a complexa e ambígua percepção da realidade e a sua relação com a produção massiva de imagens de todos os tipos). É verdade que a ideia não é desinteressante mas afunda-se numa estilização que a torna, aliás como o resto, artificial. De facto, a proposta inicial de Matrix relativa à dificuldade de distinguir (através da percepção) o mundo real do simulacro, seja do sonho ou da imagem computarizada, banaliza-se e propõe uma reflexão prática a partir de um dispositivo de criação e percepção de imagens que se pode aparentar ao da Caverna de Platão.

A narrativa cinematográfica em níveis pretende claramente mostrar que a fronteira entre o mundo real e o mundo virtual está cada vez mais frágil. Propondo novos códigos expressivos que rejeitam a linearidade clássica de narração, o cinema das novas tecnologias interioriza a opacidade diegética[3], geralmente muito bem aceite por um público familiarizado com os jogos de computadores e “treinados” a não refletir sobre a pertinência dos acontecimentos. Estamos longe da última sequência enigmática de 2001 Uma Odisseia no Espaço que mergulha o espectador num espaço virtual abstracto (e é esta abstracção que falta à representação do espaço virtual nos filmes actuais), tocando algo que ultrapassa o entendimento e as expectativas do espectador. E se, de facto, “ os universos simulacrais mais sofisticados que podemos conceber hoje convidam ao jogo da desincorporação e da reincorporação”[4], é  talvez por esta inexorável tendência em ligar o mundo virtual ao mundo real que os novos códigos narrativos do cinema continuam a sua tradição clássica: nunca deixar o espectador desemparado e confortá-lo no seu mundo inteligível.

         A problemática da codificação digital (tema de Ars Electronica 2003) aplicada à narrativa fílmica continua virtual no sentido em que as suas capacidades expressivas estão longe de estar esgotadas. Lamenta-se, aliás, ver que o cinema se limita em reproduzir esquemas já existentes, mais preocupado pelo sucesso de bilheteira do que o seu potencial significante. O exemplo de Matrix Revolutions mostra bem a falta de ousadia (e as sua limitações) do cinema mainstream: tratando-se de uma trilogia, o último filme esquece-se de aprofundar as suas questões filosóficas iniciais sobre a existência e o papel da imagem virtual, entre outros. Em vez de se debruçar sobre a forma como esses conceitos poderiam ser expressos, Matrix Reloaded e Matrix Revolutions viraram as costas ao pensamento e lançaram-se para a facilidade: o princípio dos jogos de computadores (com o espectáculo de efeitos especiais) e uma explicação quase gratuita sobre o sentido do mundo.



[1] Slavoj Zizek, Enjoy Your Symptom! Jacques Lacan in Hollywood and out, Nova Iorque, Routledge, 2001, p. 214.

[2] Em Matrix Revolutions os indivíduos pertencendo à Matriz afirmam que o “amor” não passa de uma palavra.

[3] Paulo Viveiros, A Imagem do Cinema, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2003, p. 143.

[4] Maria Teresa Cruz, “Da vida das imagens”, em Revista de comunicação e linguagens, nº 31 ( Imagem e vida), organizado por José Gil e Maria Teresa Cruz, 2003, p. 69.