O quarto do chinês, compartimentos e gavetas na criação contemporânea, para uma cultura da game art

Patrícia Gouveia

 

Where once art was at the center of moral existence, it now seems possible that play, given all its variable meanings, given the imaginary, will have that central role.
Brian Sutton-Smith, The Ambiguity of Play
Searle's argument is valuable precisely because it makes clear that is not Searle but the entire room that knows Chinese. In this distributed cognitive system, the Chinese room knows more than do any of its components, including Searle. The situation of modern humans is akin to that of Searle in the Chinese room, for every day we participate in systems whose total cognitive capacity exceeds our individual knowledge.
N. Katherine Hayles, How we became posthuman

 

Uma emergente cultura de jogos em rede que alia aspectos lúdicos a projectos artísticos em que a interactividade e o dispositivo autor/máquina/utilizador são objecto de um acto de criação colectiva e aberta, é a proposta que se pretende defender. A partir da metáfora do quarto do chinês de Searle problematiza-se a utilização da máquina como reprodutor do processo cognitivo da mente e adopta-se o modelo da vida artificial - um conjunto de acções directas e indirectas num sistema emergente dinâmico e aberto. O projecto MC2, Máquinas de Consciência Colectiva1, remete-nos para a construção de sistemas que pretendem “transpor o mapa cognitivo do mamífero para um tipo de mapa cognitivo espacial ou (ambiental), conduzindo ao reconhecimento daquilo que acontece quando um grupo de indivíduos (humanos) tentam organizar diferentes conceitos abstractos (palavras-objectos) num único habitat (através da Internet).” Uma máquina textual, “como um enorme espelho, reflectindo aquilo que acontece dentro do cérebro de múltiplos indivíduos (...)”. Uma máquina de escrita aberta a narrativas não lineares e dinâmicas.

Em 1980 John R. Searle utilizou o argumento do quarto do chinês para tentar provar que algumas correntes da Inteligência Artificial mais ortodoxas estavam erradas ao considerarem que um computador, com o programa certo, poderia ter comportamentos mentais. Para Searle nunca seria possível codificar a mente e reproduzi-la numa máquina mental pensante. Searle constrói a seguinte ficção: Y está num quarto fechado com duas gavetas. Por uma das gavetas alguém lhe fornece caracteres chineses que Y desconhece enquanto linguagem escrita, i. e., Y não sabe o que estes símbolos querem dizer. Y tem acesso a um enorme livro de regras que usa para construir frases a partir das letras que lhe foram fornecidas. Finalmente, Y envia estas novas palavras através da segunda gaveta.

Por intermédio do livro de regras, e quanto mais completo este for melhor, Y poderá responder a questões em chinês, simular que compreende chinês. Searle argumenta que por intermédio de qualquer livro de regras (programa), Y nunca vai entender o significado das palavras que manipula. A máquina de Searle nunca poderá ter consciência porque é um zombie. A ingenuidade de Searle, para os cientistas cognitivos2, foi ter considerado que a máquina não pode simular algo tão complexo, o programa da mente, do qual desconhecemos o livro de regras. Como é que alguém pode dizer que é falso algo que nunca foi testado empiricamente?

Para Searle a simulação é mera imitação3 e não um mecanismo poderoso de desenvolvimento autónomo que opera um sistema de síntese e implementa uma função robótica que, ao contrário da função simbólica, é imune ao quarto de Searle. Nos dias que correm, este robot simbiótico parece mais preocupado em reproduzir os sentidos humanos do que a mente e em nos supreender ao ver e ouvir como nós, ao transformar os estímulos auditivos e visuais, tactéis e quinestésicos, em código... Síntese, em vez de análise, é a proposta da vida artificial, que não pretende adoptar o paradigma computacional como sequência de ordens nem explicar a vida ou qualquer outro fenómeno virtual como um programa de computador. O seu intuito é deixar os computadores com os seus cálculos mundanos e dedicar-se à simulação numérica aberta à exploração4. O novo paradigma é modelar o mundo, que se auto-organiza através de um processo de sinergia, diz-nos Vitorino Ramos5, fenómeno frequente na natureza e nas sociedades humanas. A sinergia explicita-se através de interacções directas e indirectas. As sinergias de interacção directa relacionam-se com um mecanismo de auto-organização biológico, sociológico, psicológico, fisico. As interacções indirectas são também apelidadas de stigmergia, isto é, um tipo de interacção cooperativa em diferentes momentos em que um indivíduo contribui para a modificação de um ambiente, deixando em aberto a possibilidade de um outro indivíduo, mais tarde, responder a esse ambiente com um novo input.

As criaturas, brinquedos de inteligência artificial, andam a crescer nos jogos que jogamos e cada vez se parecem mais com a coisa real. O realismo nos videojogos é uma aventura dos sentidos e não de correspondência a meras representações formais. Estamos fechados num complexo diálogo, ou dança, com a máquina. Uma troca de sequências que se opera através do dispositivo lúdico em ambos os sentidos: o engenho olha o utilizador, actua e reage de acordo com os seus inputs; nós actuamos e reagimos, o dispositivo reage, premeia a nossa atenção com uma atenção própria6. A simulação replica a experiência, a sensação. O simulacro presente nos videojogos é de ordem diferente das simulações que pretendem enganar os sentidos dos emuladores de vôo e afins. O jogador joga com perfeito conhecimento que se envolve numa simulação e que a vida não é tão convincentemente organizada como os princípios da narrativa. No entanto, apenas o real está aberto a verdadeiras possibilidades de acção e se pode endereçar ao nosso aparelho sensorial7. Criar dispositivos e engenhos de inteligência artificial que estudam e replicam as acções do sujeito e permitem capturar a estrutura lógica do processo não é uma forma de criar modelos de evolução mas a evolução em si. Os agentes artificiais, incorporados no meio das nossas marionetas e personagens dos jogos que jogamos, descobrem o mundo através das suas interacções com o ambiente. Estes autómatos vão sendo criados sem deterem qualquer representação central, sem imagens nem comportamentos pré-programados8.

A referência ao realismo e à autenticidade, presente nas brochuras e catálogos da maioria dos videojogos, relaciona-se com os limites do jogo e não com a realidade como reprodução. Porque se o jogo é uma simulação então não é real. O realismo presente nos videojogos é diferente da realidade, é melhor do que esta, é um realismo sensorial. Os jogadores ficam no mundo do jogo porque a irrealidade é atractiva. As casas suburbanas dos Sims são imunes ao racismo, ao sexismo ou à intolerância religiosa. Sofrem uma simplificação, abreviação e redução do mundo em que tudo é generalização. A nação Sims é modelada a partir do mundo em que vivemos mas o capitalismo é o único modelo que podemos jogar9. Temos a possibilidade de escolher as roupas e a cor do cabelo das personagens Sims mas não temos acesso à manipulação do seu carácter, como tão pertinentemente Gonzalo Frasca10 refere na sua tese de mestrado. A presença de uma mãe alcoólica ou de um gato tinhoso não é bem vinda na casa Wallpaper11 dos Sims.

Os criadores mainstream promovem a tipificação narrativa orientada por regras e objectivos, em estruturas lineares com múltiplas dimensões. O Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrel é um paradigma das perspectivas múltiplas a partir de uma mesma história, um bom exemplo desta nomenclatura é a possibilidade de jogar Niobe ou Ghost no jogo da saga Matrix e a oscilação entre jogar a personagem de Max Payne ou Mona na saga Max Payne. A inserção de alargadas sequências cinematográficas (Metal Gear 2, Grand Theft Auto, Vice City, etc.), frequente nos últimos anos de produção digital, é exemplificativa desta necessidade de manter alguma coerência narrativa e de estruturar a matriz de forma evolutiva. Os videojogos actuais promovem nomenclaturas clássicas em que a ideia de princípio, meio e fim está muito presente12. Arquitecturas não-lineares e abertas poderá ser a proposta da game art. Se numa Noite de Inverno um Viajante, de Italo Calvino, ou O Jardim de Caminhos que se Bifurcam, de Jorge Luís Borges, podem ser algumas pistas possíveis... As hiperficções Patchwork Girl de Shelley Jackson, Afternoon de Michael Joyce ou Victory Garden de Stuart Moulthrop uma boa inspiração para a construção de novos esquemas narrativos.

Alguns projectos artísticos, da década de 90, Eve (Real World), Puppet Motel (Voyager/Laurie Anderson), Ceremony of Innocence (Alex Mayhew), tentam contrariar esta tendência adoptando estruturas abertas e não-lineares, mais caraterísticas da cultura da hiperficção e do hipertexto e de alguns jogos de primeira geração (Tetris, Pacman, Donkey Kong, Pokemon). O visitante vai explorando os corredores e salas do dispositivo de forma aleatória ou através do mapa do jogo (Frequency, Rez). O processo de triagem e mapeamento do jogador na matriz é sempre um processo de descodificação e apropriação do espaço virtual (Jak and Dexter) Nos first person shooters deparamos com uma maior possibilidade de agir. Neste tipo de performances a narratividade é menor do que nos role playing games em que encarnamos uma personagem e encenamos um drama. Nestes casos, em que as narrativas são abertas e dinâmicas, há uma maior disposição dos materiais para a deformação e para a improvisação.

Se a criação artística contemporânea não estivesse ainda tão fechada nos seus compartimentos e gavetas, resistindo estoicamente à contaminação das diferentes áreas e saberes, os projectos que vou nomear de intersecção entre arte, código, jogo, design, ilustração, música, hipertexto, arquitectura, manipulação digital, cultura, política, etc., seriam certamente muitos mais. São de salientar as desconstruções do código de jogos da cultura popular (Quake, Doom) do colectivo de artistas Jodi13. A consola de software Painstation14 do colectivo alemão constituido por Tilman Reiff e Volker Morawe. Os jogos políticos em rede dos etoy.com. Os trabalhos do grupo RTMark, com o seu Barbie Liberation Organization e outros15. As obras de Anne-Marie Schleiner, Anime Noir16 e Velvet-Strike17. O Filmtext de Mark Amerika18. O kit gameboy minimalista do artista alemão Olaf Val19 ou as performances com marionetas gigantes do artista suiço Yanick Fournier inspiradas nos duelos do Tekken ou do Street Fighter20. E, finalmente o recente jogo AgoraXchange21, de um colectivo constituído pela artista Natalie Bookchin e a especialista em teoria política Jacqueline Stevens, comissariado pela Tate Gallery.

As fronteiras disciplinares, muito presentes na cultura das Belas Artes, deixaram de fazer sentido no carácter transdisciplinar e samplado do mundo digital de DJs compositores, designers programadores, artistas curadores e críticos, designers músicos, escritores pintores, autómatos pintores, etc. Lev Manovich, no seu texto de 2002, “New Media from Borges to HTML”22, refere-se à dificuldade de legitimação institucional que as tecnologias digitais e os novos media sofrem nos EUA. O autor remete-nos para a piada corrente nos festivais new media durante os anos 90 em que se dizia que uma peça digital requeria dois tipos de interfaces: uma para os art curators e outra para o público em geral. A resistência é compreensível, segundo o autor, por existirem duas lógicas opostas no mundo da arte e no mundo new media. A primeira baseia-se na ideia romântica de autoria, que assume o autor como personagem singular; a noção de um objecto único e o controlo sobre a distribuição em lugares exclusivos (galerias, museus e performances). A segunda privilegia a existência de várias potenciais cópias, inúmeras fases diferentes do mesmo trabalho (work in progress), simbiose autor-utilizador (o utilizador pode mudar o trabalho através da interactividade), o colectivo, autoria em colaboração e distribuição em rede, que ultrapassa os canais do sistema da arte e, por último, implica uma sofisticação técnica e de equipamento que nem as galerias nem os museus americanos estavam habituados nos anos 90.

Will Wright (Sims), Chris Crawford (The Art of Computer Game Design de 1983), Jordan Mechner (Prince of Persia) e Sid Meier (Civilization)23 são alguns dos autores que deixaram marcas na cultura lúdica popular. Mas uma nova geração de criadores, como Lev Manovich, Gonzalo Frasca, Mark Stephen Meadows, para nomear apenas alguns, escrevem e debatem sobre uma das áreas mais profícuas de investigação: a game art. Por não existir verdadeiramente uma cultura independente e underground, embora existam várias experiências formais, há pouco espaço para novos conteúdos, diz-nos Natalie Bookchin, em entrevista ao jornal francês Libération24. As visões do mundo são reproduzidas nos jogos mainstream da maneira mais convencional e conservadora. O mundo actual tem suficiente material excitante, inúmeros conflitos a resolver, obstáculos a ultrapassar, sem ser necessário recorrer à magia ou a criaturas míticas para fornecer visões estereotipadas, belicistas e fatalistas.

Para Lev Manovich “as personagens modeladas em 3D dos jogos actuais movem-se e falam através do controlo do software. É este que decide o que acontece a seguir no jogo, gerando novas personagens, espaços e cenários em resposta ao comportamento do utilizador. Não é dificil perceber por que é que os automatismos nos jogos de computador estão muito mais avançados do que no cinema. Os jogos são uma das poucas formas culturais nascidas com os computadores, começaram como simples programas, antes de se transformarem nas produções multimedia complexas dos nossos dias”25. O livro Pause and Effect de Mark Stephen Meadows26 promove a intersecção entre artes visuais, literatura e interactividade, porque deparamos actualmente com um enorme tédio associado aos títulos mais comerciais. Daí a piada do endereço pessoal do autor (bore/boor/boar place). Mark Stephen Meadows é um criador de diálogos e imagens para engenhos de Inteligência Artificial, que viaja pelo mundo e escreve livros sobre a artes narrativas interactivas, guerras e terras distantes. Gonzalo Frasca27 associa o seu trabalho como designer de jogos a um projecto editorial de desconstrução e análise dos mesmos. A sua tese de mestrado de 2001: Videogames of the Oppressed: Videogames as a Means for Critical Thinking and Debate é uma proposta para romper com os esquemas tradicionais presentes nos jogos actuais e promover novas nomenclaturas, a saber, novas possibilidades de debate e de crítica nos ambientes assépticos e limpinhos de conflitos dos Sims.

Acreditamos que, também em Portugal, os compartimentos e gavetas, os quartos do chinês se vão abrindo lentamente à produção digital experimental e transdisciplinar contemporânea. Os robots pintores de Leonel Moura e Henrique Garcia Pereira, o projecto Caminhos, formigas e anarquia28, de Leonel Moura e Vitorino Ramos, são já exemplos desta sensibilidade para a deslocação artística, para a quebra de fronteiras e disciplinas. Para uma cultura de jogos infinitos, isto é, em que o objectivo é desenvolver o jogo, em que os vencedores ensinam aos vencidos melhores formas de jogar, onde a vitória é partilhada e existe uma relativa complexidade, onde as regras podem ser alteradas e a conquista é direccionada para o longo termo.

Nos jogos finitos, comuns na cultura ocidental por oposição à cultura oriental, o objectivo do jogo é ganhar ou perder. Nos jogos infinitos, o importante é a evolução do jogo em si, por oposição à metáfora darwinista de progresso, em que a unidade de sobrevivência é o indivíduo, reflectindo um comportamento que privilegia o indivíduo no jogo que é jogado29.

 


Notas

1 http://alfa.ist.utl.pt/~cvrm/staff/vramos/MC2pt.html

2 http://www.helsinki.fi/hum/kognitiotiede/searle.html

3 ftp://cogsci.ecs.soton.ac.uk/pub/harnad/Harnad/harnad89.searle

4 http://www.lxxl.pt/moura/mc2/mc2_2.html

5 http://alfa.ist.utl.pt/~cvrm/staff/vramos/MC2pt.html

6 Atkins, Barry (2003), More than a Game, the Computer Game as Fictional Form, pp. 146-147.

7 Atkins, Barry, op. cit., pp 138-139.

8 Hayles, N. Katherine (1999), “Artificial Life and Literary Culture”, in Ciberspace Textuality, Computer Technology and Literary Theory, pp. 206-212.

9 Atkins, Barry, op. cit., pp 129-133.

10 Frasca, Gonzalo (2001), Videogames of the Oppressed: Videogames as a Means for Critical Thinking and Debate, tese de mestrado inédita.

11 http://www.wallpaper.com/

12 Para uma abordagem das nomenclaturas narrativas presentes nos videojogos ver: Ryan, Marie-Laure (2001), Narrative as Virtual Reality, Baltimore and London, Parallax, The Johns Hopkins University Press.

13 http://map.jodi.org/; http://www.jodi.org

14 http://www.painstation.de/, http://www.wired.com/news/games/0,2101,50875,00.html?tw=wn_story_related, http://www.techtv.com/extendedplay/story/0,24330,3382064,00.html

15 http://www.rtmark.com/

16 http://www.playskins.com/animenoir/

17 http://www.opensorcery.net/velvet-strike/

18 Alguns destes exemplos foram retirados do artigo: “Contra a clicagem burra”, de Juliana Monachesi, no suplemento Mais! da Folha de São Paulo subordinado ao tema A revolução que vem dos Games, 18 de Janeiro de 2004.

19 http://www.olafval.de/mignonwww.khm.de/gotoand/

20 http://www.liberation.fr/page.php?Article=203314

21 http://www.agoraxchange.net/

22 http://www.manovich.net/

23 Para mais informações sobre estes autores ver: Rouse III, Richard (2001), Game Design Theory and Practice, Wordware Game Developer’s Library.

24 http://www.liberation.fr/page.php?Article=199091

25 http://www.manovich.net/

26 http://bore.com/; http://boar.com/; http://boor.com/

27 http://www.gamedev.dk/; http://www.ludology.org/

28 http://www.lxxl.pt/aswarm/caminhos.html

29 Hampden-Turner, Trompenaars, Charles and Fons (1997), Mastering the Infinite Game, Capstone Publishing, p. 30.