A temática geral do trabalho de pesquisa que actualmente desenvolvo circunscreve-se no estudo do currículo-cultural1 em imagem-som e seu correlato, na experiência formativa vivenciada pela juventude e mediatizada pelos jogos eletrônicos. Tem como objetivo analisar o currículo cultural no que se refere ao conhecimento mediatizado pelas imagens-som das telas dos jogos eletrônicos e a apropriação e produção de significados feitas pelos jovens2 nos bairros da periferia da cidade de João Pessoa.
Vive-se numa sociedade audiovisual, narrativa em imagem-som que comporta o que se convencionou chamar de currículo cultural, ou seja, um conjunto mais ou menos organizado de informações, valores e saberes que, via produtos culturais (nesse caso audiovisuais), atravessam o cotidiano de milhões de pessoas e interferem em suas formas de aprender, de ver, de pensar, de sentir. Questiona-se: que saberes emergentes permeiam aquele espaço?
Ao longo das últimas décadas do século XX, países como França, Inglaterra e Estados Unidos têm instituído com financiamento público pesquisas cada vez mais amplas (envolvendo diferentes temáticas e distintos campos disciplinares), em importantes centros de pesquisa3, tentando com seus estudos compreender não apenas a natureza das relações que estabelecem entre artefatos audiovisuais e seus espectadores, mas também o impacto político-social que essas relações podem produzir. John Willinsky (1998), argumenta que a construção das diferenças que dividem o mundo é parte do legado do Império cultural e intelectual do Ocidente, obra ainda incompleta, na qual a educação tem papel central. Ainda segundo o autor, os artefatos audiovisuais ajudam a compor as identidades de pessoas e grupos, numa estratégia política cultural que divide o mundo.
No Brasil, mesmo que ainda não se tenha configurado uma tradição de pesquisa em torno dessa temática, iniciativas vêm sendo desenvolvidas nesses sentido em programas de graduação e de pós-graduação em educação e comunicação de faculdades como a USP, entre outras. Essas pesquisas vêm indicando, de forma cada vez mais contundente, que não é possível compreender a dinâmica de funcionamento de sociedades audiovisuais sem analisar o papel desempenhado pela relação que os diferentes grupos e atores sociais estabelecem com a atmosfera cultural em que estão imersos, sobretudo, com a produção veiculada maciçamente em imagem-som.
Observa-se que o currículo dos jogos eletrônicos não tem nenhum caráter impositivo. Chega-se a ele por interesse e deleite, e, pelo mesmo motivo, adere-se a ele. As cores, as imagens, o movimento exercem fascínio e os jovens ficam horas e horas com sua atenção capturada, rendidos ao seu encanto, modelam suas subjetividades, saberes são adquiridos e transformados em um currículo mais poderoso que a escola. Mas com que lentes pais e educadores estão enxergando esses saberes emergentes? Para Steinberg (1997, p. 140) o advento da hiper-realidade eletrônica tem revolucionado as formas pelas quais o conhecimento é produzido nessa cultura [a da aprendizagem] “e as formas pelas quais as crianças vêm a aprender sobre o mundo. Pais, mães e educadores/as precisam avaliar a natureza dessa revolução e seu papel na formação da identidade”.
Sobre essa questão apresenta-se a seguir depoimento de uma mãe: “... além dos problemas que já tenho, meus filhos só vivem naqueles playgames4, não sei o que faço, para proibir. A professora reclama porque faltam às aulas”5. Palavras que permitem perceber que os jogos eletrônicos estão sendo encarados como um inimigo. Questão para a qual Vorraber (2002, p. 81) chama a atenção afirmando que, “mais importante do que descobrir o inimigo é decifrar sua lógica”. Revela-se portanto a emergência da investigação das relações de jovens com os artefatos audiovisuais e os saberes produzidos naquele cenário assim como buscar respostas para questionamentos como: Que conhecimento produzem? de que significados se apropriam? o que pensam e porque pensam assim naqueles cenários de imagens e som mediatizados pelas máquinas eletrônicas?
Embora a experiência humana tenha sido sempre mediada através do processo de socialização e da linguagem, é a partir da modernidade, com o surgimento de seus media típicos de massa (o impresso, depois os sinais eletrônicos) que se observa um enorme crescimento da mediação da experiência decorrente dessas formas de comunicação. Tanto o impresso quanto os media eletrônicos funcionam segundo Giddens (1997, p. 22), “como modalidades de reorganização do tempo e do espaço e não apenas refletem as realidades, como em certa medida as formam”. A interação entre o jovem e o artefato eletrônico ocorre de modo direto no espaço e no tempo proporcionando interatividade e motivação, condições indispensáveis para apreender a atenção para suas imagens-som.
A naturalização desses vínculos perceptuais vem mostrando cada vez mais como estão estreitas, perturbadoras e provavelmente prazerosas as interações entre o humano e a máquina. É nesse cenário que crianças e jovens estão cada vez mais construindo suas percepções de mundo, suas identidades, suas subjetividades. Eles próprios vão se constituindo como sujeitos de relações de poder-saber, mas também como objetos das relações de poder que circulam pela e com a máquina. Será que dentro dessas relações de poder que circulam entre o jogador e a máquina, o jovem tem autonomia na sua aprendizagem?
Nas palavras de Gonsalves (2002, p. 72), “ser autônomo é poder elaborar suas próprias leis, compreender as conexões que se realizam no interior do seu próprio pensamento. Ser autônomo é ser aluna do paraíso”6, é buscar nas salas interiores as descobertas mais significativas. Por isso defende-se que cada jovem é um jovem, logo com uma apropriação e produção própria de significados: (idem, p. 73), “o indivíduo, como organização, tem como produto ele mesmo, isto é, ele é ao mesmo tempo produtor e produto do processo de conhecimento”.
Na sociedade moderna o conhecimento é um bem de valor inestimável7. Segundo Maturana e Varela (1995, p. 18), só podemos conhecer o conhecimento humano (experiências, percepções) a partir dele mesmo. Ou seja, conhecer, é um processo auto-organizativo do indivíduo, isto é, cada um aprende pelas e nas relações que constrói com seu entorno. Nas palavras de Levy (2000, p. 121), “cada vez que um ser humano organiza ou reorganiza sua relação consigo mesmo, com seus semelhantes, com as coisas, com os signos, com o cosmo, ele se envolve em uma atividade de conhecimento, de aprendizado”. Nesta perspectiva, defende-se que na relação dos jovens com os artefatos é produzido conhecimento mediado pela tecnologia que aqui são os jogos eletrônicos, tendo como sujeito o jovem jogador. Existe uma interatividade entre idéia passada pela imagem e som mediada pela técnica.
Naqueles espaços de jogo, os jovens têm acesso a técnicas de simulação, imagens interativas que segundo Levy (idem, p. 165), “não substituem os raciocínios humanos, mas prolongam e transformam a capacidade de imaginação e de pensamento”. Parafraseando Assmann (1998), “em cima do que nos advém de fora reconstruímos nossa imagem do real”. Recorrendo a Castells, todas as expressões culturais, da pior à melhor, da mais elitista à mais popular vêm juntas nesse universo digital que liga, em um supertexto histórico gigantesco, as manifestações passadas, presentes e futuras da mente comunicativa. Com isso, afirma o autor, “elas constroem um novo ambiente simbólico. Faz da virtualidade nossa realidade” (2001, p. 395). Em suas reflexões, Stuart Hall (1997) vem reiteradamente apontando para a importância de ocuparmos-nos com a “esfera cultural” em nossas pesquisas. No cerne desta questão, diz ele, “está a relação entre cultura e poder. Quanto mais importante — mais ‘central’ — se torna a cultura, tanto mais significativas são as forças que a governam, moldam e regulam.” (p. 40)
Não diabolizando nem divinizando os jogos eletrônicos, é fundamental discutir este objeto com lentes teóricas que permitem pensá-lo como uma das formas de expressão de currículo cultural do nosso tempo, como um conjunto de textos que precisam ser lidos, examinados e discutidos, relativamente àquilo que produzem nas sociedades e no que diz respeito a sua participação na própria constituição do sujeito contemporâneo. Parafraseando Fleuri (1998), busca-se observar o óbvio, “ad-mirar” os fatos do cotidiano, tomando certa distância para que possa-se desenvolver uma consciência crítica e capacidade para orientar nossas ações.
ASSMANN, H., Metáforas novas para reencantar a educação: epistemologia e didática. Piracicaba: Unimep, 1996.
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FLEURI, R. M. (org), Intercultura e Movimentos Sociais. Florianópolis:Mover, NUP, 1998.
GONSALVES, E. P., Desfazendo Nós: educação e autopoiése. In GONSALVES, E. P. (org). Educação e Grupos Populares: temas (re)correntes.Campinas, SP: Alínea, 2002.
GIDDENS, A., Modernidade e Identidade Pessoal. Oeiras: Celta, 1997.
HALL, S., A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções do nosso tempo. Porto Alegre: educação e realidade,1997, v.22, n º 2 jul/dez.
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LOURO, G., “O Cinema como pedagogia”. In LOURO et ali (org), 500 anos de educação no Brasil. BH: editora Autêntica, 2000.
MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, A Árvore do Conhecimento. São Paulo: Editorial Psy, 1995.
TERRAIL, Jean-Pierre, La dynamique des génerations: ativité individulle et changemeent social (1968/1993). Paris: Éditions L’Harmattan, 1995.
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WILLINSKY, J., “Currículo depois de cultura”. In SILVA, H. L. (Org.) Séc. XXI: qual conhecimento? Qual currículo? Petrópolis: Vozes, 1999.
1 Guacira Louro desenvolve o conceito de “currículo cultural” e discute os efeitos da chamada “pedagogia do cinema” em o Cinema como pedagogia. In Louro e outros (org.). 500 anos de educação no Brasil, BH: Autêntica, 2000.
2 Neste estudo, será utilizado o conceito de juventude adotado pela UNESCO Ver homepage http://www.unesco.org/
3 Sorbone Nouvelle – Paris III, Paris X – Nanterre, Paris VIII – Saint Dennis, Rutgers University, New York University, Centro de esquisa para Inovação Cultural e tecnológica da Universidade de Brunel, entre outros.
4 Neste projeto os termos playgames, jogos eletrônicos, máquinas de jogo, playtimes, máquinas eletrônicas serão usadas como sinônimos. A precisão da terminologia será objeto do trabalho da tese.
5 Falas de mães e avó gravadas durante pesquisa realizada para a elaboração da dissertação em 1999.
6 Meireles, Cecília, Flor de Poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
7 Livro Verde para a Sociedade da Informação em Portugal. Lisboa: Iniciativa Nacional para a Sociedade da Informação, s/d.