P :: Os jogos digitais são considerados por alguns autores como a arte
do século XXI, da mesma forma que o cinema foi considerado a arte do
século XX. Considera a evolução dos videojogos semelhante
à do cinema? Trinta anos depois do aparecimento dos primeiros videojogos
que títulos, criadores e/ou produções considera como marcos
na sua evolução?
R :: Eu não sei se os videojogos vão ser o cinema do século
XXI. Eu acho que os videojogos mostram que há um paradigma diferente
que as pessoas estão a assumir na forma como lidam com as imagens. Se
nós virmos, as gerações novas preferem a interacção,
preferem os videojogos. As gerações mais velhas estão no
cinema. Portanto há esta mudança de paradigma e os videojogos
mostram, de facto, que essa diferença existe. A questão está
em saber se são os videojogos ou se há outra forma de interacção.
Porque nós podemos antecipar outras formas de interacção
que não sejam necessariamente jogos. Eu penso que a grande revolução
nos jogos começou com os primeiros jogos da Atari. Para além do
fundador da Atari, uma das pessoas mais determinantes foi uma pessoa chamada
Warren Robinet que fez o jogo Adventure, que depois foi o fundador da Warren
Company e o iniciador da realidade virtual da NASA, da realidade aumentada.
Nos videojogos nós podemos distinguir dois mundos. Nesta altura, podemos
distinguir o mundo dos jogos para PC onde há várias marcas. As
pessoas que eu mais admiro nos jogos têm a ver com a id Software que fez o Doom
e o Quake, têm a ver com Will Wright que fez o SimCity e depois o
The Sims.
E, depois, todas as pessoas ligadas à Blizzard que fizeram o Warcraft
e o Starcraft, e tantos outros jogos. Por um lado, há esse tipo de pessoas,
com três tipos de jogos diferentes - jogos de estratégia, jogos
de simulação e jogos tipo Quake. Há, depois, outra vertente
que são as consolas. E nas consolas eu acho que os grandes expoentes
no início foram as pessoas ligadas à Nintendo, todos os japoneses
que fizeram o Super Mario e jogos desse patamar. Nós, hoje, estamos perante
uma terceira geração. A primeira geração eram aqueles
jogos de arcada e depois há estes jogos mais sofisticados para PC e para
consola. Eu acho que temos agora uma nova geração, que é
a geração dos jogos móveis, jogos pervasivos. Nos jogos
pervasivos eu não estou a falar dos jogos móveis em que se faz
o download; esses são muito semelhantes aos jogos de arcada da Atari de
há trinta anos. Estou a falar dos jogos que se baseiam na localização
dos jogadores e, nesses, o grande iniciador foi a firma sueca It´s Alive!
com o BotFighters. E depois nós, na Ydreams, transportámos esse
conceito para um jogo diferente, que é multi-player, em que se visualiza
a localização dos jogadores e em que já há estratégia.
Estes são, talvez, os jogos emergentes, são uma nova geração
de jogos. Estes jogos têm uma característica. Cruzam o virtual
com o real. As pessoas estão no mundo real a jogar um jogo virtual. Há
outro tipo de jogos emergentes como aquele jogo da Playstation, o Eye Toy é
o primeiro exemplo em que as pessoas fazem o processo contrário, o virtual
entra no real. Jogos em que a interacção é por gestos,
com o corpo. Nós estamos aqui a trabalhar um pouco nesta linha
do Eye Toy, mas de uma forma distinta. Nós entramos no jogo, o real entra
no jogo, no virtual, só que o nosso virtual é substituído
pela transmissão instantânea do real. Por exemplo, nós estamos
a assistir a uma corrida de automóveis e estamos a correr num carro virtual
contra carros reais em tempo real. Eu penso que isso vai crescentemente acontecer,
a exemplo do que acontece na televisão com os reality shows. E, portanto,
eu acho que nos jogos cada vez mais vai haver esta mescla do virtual com o real
e essa mescla pode ser de várias formas. Pode ser de uma forma fixa,
em que uma pessoa está em casa sentada no sofá a guiar um carro
quando a corrida real se está a passar noutra parte do mundo ou a pessoa
está no meio da rua a jogar no virtual em que há um cenário
real. E, portanto, esta é uma história muito rápida do
mundo dos jogos. Eu acho que se tiver que apontar duas ou três pessoas,
eu vejo sempre muito mais pelo lado académico do que pelas pessoas que
desenvolveram jogos. O Warren Robinet foi uma pessoa extremamente importante,
porque foi a pessoa que começou a identificar quais eram os blocos fundamentais
para desenvolver um jogo e, depois, desenvolveu toda a parte tecnológica
que permite os jogos de hoje - os jogos baseados em computação
gráfica interactiva, em 3D, em tempo real. O Warren Robinet foi, também,
o precursor dos jogos que nós estamos a falar, jogos pervasivos, que
são jogos onde a realidade é aumentada. A segunda pessoa que eu
mais admiro é o Will Wright que criou jogos em que, de facto, há
um elemento fundamental que são os modelos de simulação.
O SimCity é a melhor ferramenta do mundo em planeamento urbano que existe.
Todas as cidades deviam ter SimCity reais. E o The Sims é uma nova geração
de jogos completamente diferente. Depois o grupo texano id Software que criou
o Doom e o Quake. No meio, ainda pensando em termos mais académicos,
há pessoas fundamentais que hoje em dia estão associadas à
indústria dos jogos e que no início não estavam e uma delas
é Craig Reynolds, um dos fundadores da vida artificial e que foi a pessoa
que programou a animação do Rei Leão, premiado com um
Óscar
na altura, e hoje em dia é director de investigação da
Sony e da Playstation. Estes são os elementos fundamentais. E, obviamente,
o que se passa na indústria de jogos é que há imensos talentos
emergentes em qualquer parte do mundo. Há oitenta firmas e estúdios
no mundo a fazerem jogos para as consolas e para os telemóveis. E nessas
oitenta firmas há pessoas excelentes. Tudo pode acontecer.
P :: Pela sua experiência com empresas e clientes estrangeiros qual
a impressão que tem relativamente à implementação
e desenvolvimento de uma cultura lúdica?
R :: Se nós olharmos para a história, e a história do século
passado está muito retratada nos filmes, a cultura lúdica começou
por ser um privilégio dos ricos. Há aqueles filmes em que as pessoas,
aparentemente, nunca fazem nada, viajam, têm todo o tempo livre do mundo.
Eu penso que a televisão e, em primeiro lugar, o cinema, e depois a televisão,
é o primeiro marco de massificação da componente lúdica
em que as pessoas não podiam experimentar realmente as viagens, o prazer,
mas tinham um sucedâneo que era transmitido nas imagens dos écrãs.
Eu acho que o que os jogos, hoje em dia, têm é muito para além
desse elemento de colocarmo-nos em mundos de fantasia, e que são mundos
muito mais atractivos que os mundos reais: há uma componente fundamental
nos jogos de hoje que tem a ver com as relações humanas. A maior
parte dos grandes jogadores quer jogos de interacção, quer jogos
multi-player. Portanto, as relações entre as pessoas e as
interacções
entre as pessoas são fundamentais e são uma componente fundamental
do exercício lúdico. O exercício lúdico já
não é um exercício unívoco, em que a pessoa está
a olhar para o écrã que está a transmitir as imagens, nem
sequer é um exercício biunívoco em que a pessoa está
a interagir com o jogo e há interacções nos dois sentidos,
mas interacções em múltiplos sentidos em que as pessoas
estão a jogar o jogo e estão, simultaneamente, a fruir o jogo
com grupos com os quais combatem noutros planos. A cultura lúdica de
hoje é muito diferente e isso vê-se dentro de uma casa de qualquer
família portuguesa. Dentro da família os pais estão a ver
televisão e os filhos estão a jogar jogos multi-player com pessoas
de todo o mundo, onde os contactos são interpessoais mas estão
distanciados de Portugal. O que é curioso é que não só
os jogos são jogados dessa forma - obviamente depois há aquelas
cenas ao fim-de-semana em que as pessoas se juntam em bares, em festas. O que
se está a assistir é o ritual em que durante a semana a pessoa
tem o seu divertimento em casa, mas conectado com outras casas, e depois ao
fim-de-semana lá se decidem encontrar e o divertimento, realmente, tem
um rosto humano. Mas, esse divertimento é completamente diferente do
divertimento das gerações anteriores que iam ao cinema, viam televisão
e algumas faziam desporto. Em relação à cultura lúdica,
eu acho que um dos grandes derrotados neste processo é o desporto físico.
As pessoas quase que preferem jogar futebol no videojogo do que jogar futebol
no mundo real. O que se está a assistir, na cultura lúdica, é
uma crescente supremacia do mundo virtual sobre o mundo real. E isso é
triste.
P :: Que tendências narrativas, de género e de tecnologia são
actualmente visíveis na criação de videojogos? Como acompanha
a Ydreams essas tendências?
R :: Eu acho que as narrativas são extremamente pobres em geral. São
marcadas pelo culto da violência. O que nós temos vindo a trabalhar,
e nós estamos muito ligados ao MIT Media Lab, ao grupo Story Networks
de Glorianna Davenport, é tentar estudar formas de criar histórias
virtuais. Eu acho que há um misto que se tem de atingir e é dificilmente
atingível, que é cruzar a cultura europeia tradicional, que é
tradicionalmente muito mais profunda, com a cultura popular americana, que é
muito mais atractiva. Nós, pela pesquisa que temos feito, achamos que
há um grupo de pessoas do Brasil que conseguiu fazer essa combinação
e a primeira coisa que a Ydreams fez foi contratar uma dessas pessoas. O Ricardo
Andrade é a pessoa que eu conheço que melhor consegue captar e
cruzar estes dois tipos de cultura. O segredo está aí. A narrativa
tem de ser extremamente atractiva e, simultaneamente, ter uma complexidade que
tenha o mínimo de atracção sobre as gerações
cada vez mais evoluídas que jogam jogos. E aí há vários
caminhos. Eu não sou especialista em narrativa, mas há vários
caminhos que se têm vindo a seguir. Há exemplos clássicos
de ir buscar histórias clássicas e de filmá-las, e depois
há exemplos completamente opostos que têm a ver com utilizar simplesmente
a realidade. Por exemplo, uma das coisas que nós temos trabalhado é:
como é que construímos um jogo tendo uma câmara na rua onde
as pessoas passam? Como é que se caminha a partir daí? Em termos
de tecnologias o que se está a passar é que é tudo mais
rápido, o processamento é mais rápido, a banda larga permite
a transmissão mais rápida, as placas gráficas não
têm nada a ver com o passado e, portanto, nós estamos a caminhar
no sentido de haver foto-realismo quase absoluto. Foto-realismo implica sempre
a geração sintética das imagens e isso é um trabalho
pesado e caríssimo. Nós temos caminhado - e quanto mais capacidade
de processamento, de memória, de banda o permitirem - é em como
trabalhar sobre imagens reais. Como é que nós trabalhamos com
o vídeo? Como é que o vídeo se torna em vídeo verdadeiramente
interactivo? E, nós achamos que nessa componente, nesta altura, somos
únicos à escala global. Nós temos as melhores tecnologias,
nesta altura, de qualidade a lidar com o vídeo interactivo, algumas delas
não são ainda praticáveis no mercado. Mas isso é
um trabalho que tem sido feito ao longo dos anos. Nós apostamos muito
nessa área. Depois há outro nível de observação
que tem a ver com os jogos cross media. O que se passa nos jogos - nós
já temos visto isso de uma forma muito rudimentar com os jogos de telemóvel
que promovem a interacção com a televisão - é que
os jogos vão ser, de facto, cross media. Nós temos uma experiência
muito interessante, um curso em que as pessoas jogam com mobiliário urbano.
Imaginemos uma cidade que é uma cidade mágica com o mobiliário
urbano que através de chips bluetooth emite informação,
música, imagens ou som quando a pessoa passa com o telemóvel,
em que parte do mobiliário urbano são écrãs interactivos
de larga dimensão. Nós estamos a imaginar jogos em que o telemóvel
é um controlo remoto e em que há diferentes tipos de écrãs,
em casa na televisão, na rua no MUPI da JCDecaux, ou no écrã
do estádio, ou no computador. Estamos muito atentos a esses jogos que
ainda não provaram ser um mercado, mas são um conceito completamente
diferente. Nesta altura, têm tido o principal sucesso no mundo publicitário.
Ao nível das tendências de género isso tem sido dramático
no mundo dos jogos. Nós realizámos na Ydreams um acontecimento,
o Future Gaming 2004 (FUGA) e 95% das pessoas que vieram eram homens. O número
de raparigas era mínimo. Temos dialogado com as operadoras todas e o
que as operadoras querem são jogos para todos os géneros. Estamos
a cingir os jogos a 50% da população à partida. E, nesse
sentido, nós até temos um projecto de código Mobile em
que o objectivo é exactamente esse. Há os géneros e as
idades. A média de idades em jogos subiu muito. Nesta altura, é
à volta dos trinta anos. Hoje em dia, começa a ter sentido pensar
em jogos dos 25 para os 40 anos, o que era impensável há bem pouco
tempo. Até agora os jogos eram todos dos 12 aos 25. Agora passamos a
ter jogos dos 25 aos 40 e esses jogos têm que ser para todos os géneros.
E há outro ponto importante, nós agora estamos a trabalhar com
um grande fabricante de brinquedos e eles querem jogos inter-gerações,
os pais a jogarem com os filhos.
P :: Pensa que o panorama de desenvolvimento dos videojogos actual estimula
as intersecções entre diferentes áreas de investigação?
Inteligência Artificial, Estética, Escrita e Hipertexto, Filosofia,
Música, para nomear apenas algumas. Serão os videojogos um território
por excelência de convergência e de diálogo entre áreas,
aparentemente, compartimentadas?
R :: Não tenho a menor das dúvidas. Eu acho que os videojogos
são um laboratório fantástico. Nós vemos isso na
Ydreams onde temos várias pessoas de várias áreas a realizar
os videojogos. O desenvolvimento dos videojogos, logo à partida, tem
sido pluridisciplinar. O grande problema em Portugal, por exemplo, é
que durante anos os videojogos eram produzidos por engenheiros. Aliás
o mesmo problema se passou na história do cinema em que os filmes foram,
no início, desenvolvidos por engenheiros e foram um fiasco e só
quando começaram a atrair artistas é que passaram a ser um sucesso.
Nos videojogos, hoje em dia, já temos pessoas de várias áreas
a trabalhar e eu acho que o videojogo é um paradigma que pode ser utilizado
em muitas outras áreas, até em áreas profissionais. Por
exemplo, o planeamento urbano. Nós já vimos o caso do SimCity,
em que o planeamento urbano é um jogo, é um videojogo. Em última
análise, o governo de um país é um videojogo, em que nós
temos ministros a gerir um país sobre um ecrã. Nós podemos
pensar nestes termos para linguística, para estudo da literatura e assim
sucessivamente. Todo este paradigma do videojogo é riquíssimo.
Pode ser, de facto, utilizado nas mais variadas áreas. Um dos pontos
dramáticos em Portugal é que isso ainda não foi possível
na universidade. As universidades caracterizam-se por criar cadeiras sempre
que as matérias já são caducas ou ultrapassadas, isto é,
quando já passaram o seu tempo de vida. E, então, é isso
que acontece muito. Um dos fenómenos actuais nos videojogos é
que os videojogos não são tratados na universidade portuguesa,
ponto final. Aliás, o mesmo se passou com a Internet há uns anos.
Está-se sempre atrasado e isso é péssimo sob todos os pontos
de vista. Os standards dos videojogos - é importante que se diga - são
os mais elevados possíveis na indústria de software. O jogo não
pode ter um bug. Se uma firma faz um jogo com um bug vai à falência
rapidamente. O mesmo não se passa no software profissional. Todo o
software
da Microsoft é muito mau, com efeito. Logo à partida, os videojogos
são um sinónimo de excelência. E a excelência deve
ser o guia para todas as profissões.
P :: Acha possível a articulação de equipas com elementos
provenientes de diferentes áreas tão díspares quanto a
engenharia, artes visuais, arquitectura, escrita criativa, etc., para a criação
de videojogos? Há lugar para uma formação académica
orientada para o design/criação de videojogos ou deverá
esta actividade recolher, ao nível de uma equipa, os contributos de diferentes
áreas?
R :: Eu acho que há lugar para essas duas diferentes visões. Em
primeiro lugar, obviamente que nós temos de ter especialistas. Se eu
quero apresentar uma cidade em 3D tenho de ter um arquitecto para desenhar a
cidade em 3D. Se eu quero ter música tenho de ter um músico. Se
nós temos de ter elementos de inteligência artificial no jogo temos
de ter pessoas dessa área de investigação. Nós temos
de ter especialistas. O que nós estamos a fazer aqui na empresa, nós
estamos associados à Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, e temos
formado as pessoas da equipa de jogos no mestrado de videojogos que eles têm.
E o mestrado de videojogos que eles têm está dividido em duas áreas.
Está dividido em design e concepção - que tem a ver com
desenho de interfaces, com a história, com a narrativa, com toda a parte
que podemos dizer mais soft - e tem a parte tecnológica e de desenvolvimento.
Portanto, o que nós achamos é que as pessoas têm de ter
uma formação inicial diferenciada, mas depois os videojogos têm
todo o sentido em termos de pós-graduação. As pessoas que
saem destes programas, e nós negociámos muito esses programas,
têm uma visão conjunta, isto é, aprendem a integrar a visão
das pessoas das outras especialidades logo à partida. Fazer isso é
óbvio que é possível e acontece, mas é distinto
tem de se procurar uma linguagem comum. Eu acho que nos jogos o storyboard é
a primeira linguagem comum. Todas as pessoas colaboram a fazer o storyboard,
o storyboard é algo que é gráfico, visual, as pessoas percebem
claramente onde estão inseridas e qual é a sua competência.
Mas percebem a um nível superficial. A um nível profundo, um produtor
de jogos tem de saber quais são as limitações tecnológicas.
Quando nós fazemos jogos para telemóvel, onde estamos a falar
de jogos em que o máximo é 100K, a pessoa que desenvolveu o jogo
tem de estar consciente de que o jogo só vai ter 100K. A pessoa que faz
o design, a pessoa que faz o som tem de ter um conhecimento mínimo da
componente tecnológica. Eu acho, em primeiro lugar, que há lugar
para formação académica, e acho que essa formação
académica deve ser a nível mais de pós-graduação.
E, em segundo lugar, é óbvio que a forma de integração
das pessoas pode acontecer no desenvolvimento de um jogo, mas a formação
comum que essas pessoas possam ter em mestrado ou em pós-graduação
nesta área ajuda muito.
P :: Não é hábito dizer-se, de um país como
Portugal, que se estimula a criação colectiva e a autoria partilhada
e emergente. Como considera o caso português, comparativamente ao estrangeiro,
a nível de investigação e desenvolvimento de videojogos?
Há algum exemplo pelo qual nos devamos guiar?
R :: Eu acho que em Portugal não existe a tradição dos
videojogos, não existe uma tradição que estimule a criatividade;
os videojogos são um domínio das outras áreas. Acho que
a universidade portuguesa é do mais cinzento que poderá ser possível.
Além disso, a criação que há é uma criação
muito virada para o século XIX, para a mentalidade do século XIX.
Portanto, Portugal é o último país donde se podia esperar
investigação nos videojogos. Quando nós começámos
a lidar com os distribuidores internacionais, todas as pessoas perguntaram 'Mas
vocês são de Portugal?'. Nunca lhes passava pela cabeça
que, em Portugal, houvesse alguém que pretendesse desenvolver um jogo.
Nós temos conhecido várias firmas que fazem jogos nos Estados
Unidos, em França, em Espanha, na Suécia, sobretudo estes países,
e, basicamente, eu acho que a cultura comum é uma cultura de independência
completa. Normalmente, as pessoas que desenvolvem jogos são pessoas incrivelmente
independentes. Aqui não há factorys. Há fábricas
mas as fábricas não são bem sucedidas. Os estúdios
que são bem sucedidos são os estúdios muito, muito virados
para a criatividade, com produções muito, muito independentes.
Portanto, o único exemplo que eu conheço de intervenção
central e governamental no desenvolvimento da indústria dos videojogos
é a França. A França com a InfoGrames, que agora se chama Atari,
comprou o nome e a esse nível e a nível dos jogos móveis
tem das melhores firmas da Europa. E esse é o exemplo de intervenção
estatal. Perceberam que a indústria dos videojogos era fundamental e
injectaram capital. E acho que essa injecção de capital deu resultados,
é óbvio. Eu acho que em Portugal estamos longe disso. Nós
não estamos à espera que o Estado injecte capital. Hoje em dia
o problema de capital não é um problema estatal. Nós temos,
nesta altura, oito ofertas de investidores, oito ofertas de investidores internacionais.
Portanto, o dinheiro não é um problema. O problema mais grave
tem a ver com a formação das pessoas. Tem a ver com o facto de
ser extremamente difícil em Portugal... Não na parte tecnológica:
a parte mais difícil é toda a parte de criatividade e de marketing
porque está completamente anquilosada. É extremamente difícil
procurarmos pessoas soltas. É extremamente difícil ao português
soltar-se. E os jogos precisam de pessoas soltas.
P :: Pelo mundo fora estão a surgir jogos artísticos que criticam
e tentam desconstruir as regras e esquemas tradicionais da cultura mainstream
dos videogos. Como vê articulações como esta entre o tempo
da técnica, mais rápido, e o tempo da estética, mais lento?
R :: Estivemos no ArtFutura, em Barcelona este ano, e temos estado em vários
festivais com grupos que procuram utilizar os videojogos de forma artística
e tenho duas opiniões sobre esses movimentos e isso tem muito a ver com
a cultura e a investigação universitária. Eu acho que a
investigação universitária só tem sentido se é
uma investigação de ruptura, se é uma investigação
virada completamente para o futuro, e uma investigação de alto
risco. E, portanto, como é de alto risco, há vezes em que se falham
e há vezes em que se acerta. O que nós por exemplo vimos nos EUA
é que o que eles estavam a propor estava atrasado dois anos em relação
ao que nós, como empresa comercial, estávamos a fazer. E isso
tem sentido? Não tem sentido nenhum. O ter sentido é estar na
fronteira. E eu para ser honesto não vi ninguém que esteja verdadeiramente
na fronteira nas universidades. Não estão na fronteira. Nesse
sentido, eu acho que são irrelevantes. Para serem relevantes têm
de estar na fronteira. Por exemplo, estivemos no MIT Media Lab em Janeiro com
várias pessoas dessa área e a minha sensação na
altura era que nós estávamos muito mais à frente. Porque,
basicamente, a pressão que nós temos neste momento, é que
nós estamos num mundo completamente novo. Na nossa área, nos jogos
móveis - o início foi há dois anos - é um mercado
com dois anos e nós estamos dois ou três anos à frente.
E o que se passou nos movimentos universitários é que nunca tiveram
as ligações com as empresas que criavam as tecnologias de base,
como a Nokia. Por exemplo, nós tivémos telemóveis da Nokia
muito tempo antes de eles chegarem ao mercado. E, portanto, quando eles chegam
ao mercado nós já desenvolvemos jogos. O problema da universidade
em geral, e da investigação científica em particular, é
que hoje em dia, ao contrário do modelo linear tradicional em que a ciência
dava origem à tecnologia, em muitos casos a ciência é tecnologia
aplicada. E, portanto, se não há relações tecnológicas
de base - com a Nokia e outras empresas, como nós hoje em dia temos -
corre-se o risco de estar atrasado. É completamente diferente eu estar
a pensar em projecções com um projector com uma determinada resolução
e pensar num esquema em que tenho um projector a laser que permite projectar
sobre uma cidade, por exemplo. O facto de ser tecnologia aplicada é dramático.
O Media Lab sempre foi forte nestas relações com a componente
tecnológica. Nós como firma estamos sempre a olhar à volta
e, honestamente, ainda não vimos nada em torno desses movimentos académicos
que nos despertasse a atenção na área dos videojogos. Noutras
áreas há pessoas com um trabalho notável. Por exemplo,
aqui na faculdade há o grupo de Química com o qual nós
trabalhamos e eles estão a trabalhar numa área que pode ter um
enorme impacto nos videojogos, que é a fotoquímica. Eles trabalham
com tintas invisíveis que só podem ser vistas com câmaras
especiais. E isso pode dar origem a visões completamente diferentes.
Não podemos limitar-nos a determinadas áreas. Em algumas áreas
há pessoas que estão a fazer um trabalho que parece ser irrelevante,
mas que pode ser relevante neste caso específico dos videojogos. Eu acho
que nós aqui temos um radar enorme que nos permite ver tudo o que se
passa à nossa volta. Mesmo em Portugal há um grupo que fez um
trabalho experimental muito giro, o SenToy do INESC, em que se manipulando um
boneco se manipula um elemento virtual. E este é um exemplo, mas não
creio que seja um desenvolvimento muito revolucionário. Eu acho que o
desenvolvimento das tintas invisíveis e das câmaras, esse pode
ser revolucionário. Nesta altura, o que nós precisamos sempre,
e em qualquer campo, é de revolução. E a revolução
surge onde menos se espera.