A Sala de Perigo como Simulação Tecnológica da Consciência

dr bakali

 

“Se fabricar o poder é claro, já não o é tanto o respectivo controlo, pois é algo não tão científico”
Richard Feynman

 

Na saga dos X-Men1, a Sala de Perigo2 desempenha um papel importante na aprendizagem dos mutantes. Instalada na mansão do Professor Xavier (que passa por ser uma escola para crianças sobredotadas) a Sala de Perigo é um campo de treino onde os mutantes se confrontam com “perigos simulados”, antecipando e preparando as respostas aos “perigos reais”.

A primeira conceptualização da Sala de Perigo, no início dos anos 60, é um espaço normal - poderíamos facilmente compará-la a um ginásio - com autómatos e outros sistemas mecânicos que reproduzem fielmente os supervilões com quem os X-Men amiúde se defrontam. Estes robots são programados de acordo com vários cenários de batalha. Deste modo, a Sala de Perigo é, desde sempre, um espaço programado, capaz de oferecer experiências de acordo com as decisões do programador. É um lugar de antecipação, de aprendizagem pela experiência.

Gradualmente, os autómatos irão ser substituídos por simulações holográficas3. O efeito de imersão mantém-se mas os desafios tornam-se incorpóreos, deixam de ser uma ameaça física real. Os autómatos são substituídos por imagens tridimensionais mas os princípios da (pré-)programação não se alteram.

As coincidências entre esta “escola virtual” que é a Sala de Perigo e os videojogos4 parecem evidentes: um teatro de experimentação onde testar e incrementar as capacidades de destreza física e, sobretudo, de raciocínio, entendimento do desafio e resposta adequada às situações. Com mais ou menos intermediação, trata-se de sobreviver num ambiente simulado. É vulgar os X-Men repetirem o mesmo treino até conseguirem responder com total sucesso ao desafio, da mesma forma como um jogador repete um determinado nível até o ultrapassar5.

De um formato inicial em que as adversidades possuíam consistência - existência física - e, presume-se, alto grau de periculosidade (como nos treinos militares sob fogo real) até à simulação holográfica em que a ameaça deixa de ser letal, a Sala de Perigo pretende sempre colocar o corpo perante a ameaça e sobreviver. O que nos leva à diferença entre a Sala de Perigo e os videojogos: na primeira o efeito de imersão é dado pela presença pois o corpo está lá; nos segundos a experiência háptica é intermediada pelos controlos e pela visão, já não há presença mas telepresença. No entanto, que percebe o corpo entre uma e outra?

 

[user-generated reality]

Mas o ecrã é em si um artefacto da visão centralizada, pode argumentar-se. E bem, já que se trata de um enquadramento confinado, com uma relação de largura e comprimento fundada nas mais longínquas técnicas e regras douradas. Sugerimos porém que se atente na pressão que sobre este enquadramento exercem duas forças: primeiro, o fora de campo como factor de reconstituição do espaço-tempo virtual; segundo, da visão como factor de imersão e consciência.

A atenção periférica e descentrada funda-se em novas relações entre campo e fora de campo; entre ecrã e o que se passa fora, ou em redor, dele. O fora de campo - espaço virtual (aqui em sentido literal) ou invisível - criado pelas artes dramáticas e indissociável do entendimento do cinema, adquire com os videojogos uma nova dinâmica de relacionamento com o que é visto já que, ao contrário do cinema, não instala uma verdadeira descontinuidade espacial nem pretende compensar os efeitos da montagem – ou seja, não pretende reconstruir o tempo.

De facto, embora a análise do fora de campo no cinema se faça quase exclusivamente recorrendo à inserção de espaços não vistos e que se encontram para além do ecrã de projecção, este artíficio, tal como o da persistência retiniana, tem como principal função a reconstituição do movimento e do tempo e não, realmente, a configuração de um espaço de imersão para o corpo. O fora de campo do cinema é, justamente, um elemento semântico da montagem do tempo e alonga-se, bidimensionalmente, para além de cada um dos quatro lados rectos do ecrã, como um cubo que fosse desmanchado e espalmado à nossa frente (como ressalvou Arnheim, o filme é “always at one and the same time a flat picture postcard and the scene of a living action. From this arises the artistic justification for what is called montage”6).

O espaço dos videojogos, ao revés, é curvo, esférico e fecha-se sobre si mesmo. Ou seja, é infinito - infinitamente curvo - e funciona à velocidade da luz (não há qualquer atraso na sua emergência). Desta forma, obtemos o efeito de similitude entre real e virtual e o efeito de continuidade espacial entre o que é visto e o invisível.

Com Pacman, saímos de um dos lados do ecrã (existem versões em que se sai pela esquerda ou pela direita e versões em que o movimento se faz entre o lado inferior ou superior do ecrã) para reaparecermos no lado oposto; em Asteroids, as naves caem-nos continuamente pelo lado de cima desaparecendo, se não as abatermos, numa linha de horizonte quase coincidente com o limite inferior do ecrã para, de novo, reaparecerem no cimo. Sujeito (Pacman) e objectos (Asteroids)  descrevem um interminável movimento circular, que leva cada lado do ecrã a tocar o seu oposto, no que Mark J. P. Wolf chama “wraparound space”7.

Nas simulações de corridas é a linha de horizonte que continuamente se refaz e por onde nos aparecem os objectos (os postes de luz que, aumentando de tamanho, criam a profundidade de campo) para depois desaparecerem nas nossas costas, saindo pelos lados esquerdo e direito do ecrã. O fora de campo é, neste caso, um infinito dentro da própria imagem. Quando a tecnologia dos videojogos evoluiu o suficiente para gerar universos tridimensionais revisitáveis e quase intermináveis, como em Spyro, a justaposição do campo com o fora de campo deu-se de forma inalienável. O campo dos jogos não termina tanto por uma convenção da linguagem ou do medium, como na ópera ou no cinema, mas porque ao contrário dos media passivos, aqui morre-se.

Por outro lado, como realidade gerada pelo utilizador8 - apesar do limite técnico imposto pelo programa(dor) e pela máquina - este espaço está sempre em renovada criação enquanto o utilizador estiver aos comandos (ao contrário das artes dramáticas onde o fora de campo permanece inacessível ao espectador). Isto acontece assim porque, mais do que controlar o espaço, o utilizador controla o tempo (o tempo da experiência) ou melhor, a imagem do espaço-tempo. Trata-se de uma cultura da simulação e não mais de uma cultura do espectáculo; e “na cultura da simulação, a partir do momento em que uma coisa funciona, tem toda a realidade de que necessita”9. Essa experiência de realidade, mais do que um prodígio técnico, é uma construção sensorial do utilizador que transforma as suas percepções em narrativa e, desta forma, estabelece a similitude entre representação e real.

Arnheim explicou que o cinema só é possível devido à sua “parcial irrealidade”10. Não fosse esse irrealismo, nenhum espectador sobreviveria aos saltos a que seria obrigado de cada vez que o ponto de vista da câmara - que é também o ponto de vista do espectador - se altera. Ao invés, o espectador permanece sentado na cadeira da sala de cinema, capaz de ler o espaço criado pelos planos assíncronos.

Janet Murray, muito justamente, chamou-nos à atenção de que “os cortes (planos) são bons para um filme convencional - ajudam a audiência a ver a imagem total - mas não servem para um filme de 3D que nos consegue colocar de forma tão concreta num espaço. Ficamos tontos de cada vez que mudamos de ponto de vista”11.

Muito embora a observação de Murray se refira ao cinema tridimensional e de alta definição e não especificamente aos jogos, creio que é desnecessário argumentar sobre o eficaz efeito de imersão provocado por estes últimos, o que sugere que a percepção do espaço e do tempo se faz aqui obedecendo a um continuum do espaço-tempo (tal como a percepção do  real)  em vez de assentar sobre convenções de linguagem (a montagem no cinema, os actos na ópera ou no teatro, as metáforas na literatura) que produzem, invariavelmente, vazios, rupturas, etc. A cultura de simulação, mais que representar o mundo de forma a obter a ilusão perfeita do real, ilude os mecanismos de percepção mimetizando-os como linguagem do medium.

 

[consensual hallucination]

A realidade não é exactamente aquilo que pode ser medido ou que passa no teste de prova12. A realidade é, numa determinada época e num certo lugar, o que consensualmente pode ser aceite como matriz para um conjunto complexo de valores morais, éticos, religiosos, etc. É neste contexto que surge a contaminação entre planos de existência e sua validação. Uma cultura confrontada com visões macroscópicas do universo e visões microscópicas da matéria realiza o colapso da unidade espacial e temporal, da unicidade do ser.

William Gibson falava de uma alucinação consensual ou partilhada para descrever o ciberespaço. Este espaço sem dimensões nem volume, logo um não-espaço ou espaço virtual, só existe em tempo real, ou seja, é um espaço em contínua criação e desagregação e que se estabelece sincronicamente à comunicação entre pessoas ou entre estas e uma máquina significante. Este espaço, esta alucinação, é o efeito da telepresença como extensão do homem; da sua permanência fantasmagórica fora de si (alucinada pois). Se acreditarmos que a realidade não é a matéria e as leis que a regem mas sim o entendimento da matéria e o sentimento das leis, facilmente se vê que o real é, também ele, fruto de um consenso, mais ou menos alucinado segundo as convicções de cada um.

O que é não possui uma existência anterior e independente do corpo que vê (dito de outra forma: existe um contínuo efeito de retroacção entre o que é visto e o corpo que vê). Esmagado pela velocidade da luz (no ambiente dos ecrãs onde a velocidade do som não provoca distância) o corpo imerso dá-se primeiro à experiência relegando para segundo plano a interpretação. Deleita-se e dá-se à alucinação.

Referimo-nos, especificamente, ao que Paul Virilio disse ser o plano da actual revolução das transmissões: a “passagem dessa famosa persistência retiniana que permite a ilusão de óptica da projecção fílmica, à persistência do corpo desse ‘homem terminal’, condição de possibilidade da mobilização repentina da ilusão do mundo, de um mundo inteiro, telepresente em cada instante, vindo o corpo próprio da testemunha a ser o último território urbano”13. Os videojogos, como experiência contínua do corpo e da retroacção da luz (que é também o espaço virtual) confirmam esta persistência.

Os media eléctricos “não apenas expandiram um sentido singular como os velhos media mecânicos – i. e., a roda como extensão do pé, o tecido como extensão da pele, o alfabeto fonético como extensão do olho – mas aumentaram e exteriorizaram todo o nosso sistema nervoso central”14. Passámos de uma visão puramente(?) retinal para uma visão táctil, háptica; uma visão do corpo cujo sistema nervoso central está directamente ligado à experiência da luz. E nessa passagem algo deve ter ocorrido, algo deve ter mudado.

Recentemente C. Shawn Green e Daphne Bavelier (Universidade de Rochester) levaram a cabo uma série de experiências para identificar eventuais diferenças em alguns aspectos da atenção visual entre jogadores de videojogos e não-jogadores15. Para estes investigadores, “a exposição de um organismo a um ambiente visual alterado facilmente resulta numa modificação do sistema visual do organismo”16.

De forma resumida e simplificada, as experiências consistem na aparição, breve, de pontos luminosos num ecrã, e na medição da capacidade de as pessoas os visualizarem. As luzes no ecrã aparecem como vértices de formas geométricas (quatro luzes formam um quadrado ou um losango, p. ex.) e, em cada série dessas formas, foram incluídas outros pontos luminosos sem qualquer relação com as formas geométricas (o que os investigadores chamaram “distractores”). Estes “distractores” têm, também, tendência para aparecerem perto das margens do ecrã e não ao centro.

Enquanto os não jogadores conseguem visualizar os pontos que aparecem no enquadramento central do ecrã e se formam geometricamente, revelam-se incapazes de ver os tais elementos “distractores” na periferia do mesmo ecrã. Os jogadores, por seu lado, identificam-nos com maior à-vontade. Expondo posteriormente os não-jogadores aos videojogos, notou ainda esta dupla de investigadores que os resultados obtidos em novas medições se aproximavam aos dos jogadores regulares. Ou seja, o sistema visual modifica-se com a exposição durável a um ambiente visual específico17.

 

[screenagers]

Douglas Rushkoff lembrou-nos que "sem termos migrado uma só polegada, viajámos mais longe que qualquer outra geração na História"18, argumentando que por via disso "o grau de mudança experimentado pelas últimas três gerações rivaliza com o de uma espécie sofrendo uma mutação"19.

Os novos heróis, como as Teenage Mutant Ninja Turtles, os Transformers e os Mighty Morphin Power Rangers incluiem a habilidade da mutação na sua própria designação. Atente-se a outros dos mais recentes exemplos de popularidade: Son Goku e outros protagonistas de Dragonball metamorfeiam-se em superguerreiros (e essas metamorfoses são classificadas em graus ou níveis, conforme a mudança); os Pokemons, esses, existem em várias formas, ou seja, em vários estados evolutivos. São o mesmo mas não são o mesmo. Pikachu torna-se Raichu. Poliwag torna-se Poliwhirl que se torna Poliwrath.

Os miúdos - na verdade já há várias gerações - começaram por se treinar com o controlo remoto da televisão de forma a manter o nível de atenção ao longo de, e como que “pairando sobre”, vários conteúdos - o zapping - retirando sentidos imprevistos e acidentais de uma leitura fractal dessa programação (de tal forma que até lhes é diagnosticado Attention Deficit Disorder). Deste tipo de leitura, que trata os assuntos como um rizoma e o tempo como um descontínuo, facilmente se passa ao acto de gravar (save) um jogo e retomá-lo amanhã ou depois, como se o tivéssemos abandonado há trinta segundos atrás para apenas desviar o olhar.

O que é admirável é que, para além da criação e degeneração do espaço a seu bel-prazer - pelos processos que, um pouco exaustivamente, atrás se descreveu - os novos mutantes parecem ser capazes de realizar a mesma operação com o tempo. Tais operações devem-se à exposição prolongada ao virtual; a um espaço que não é exclusivo dos videojogos mas cuja matriz, à ausência de matéria, só pode ser composta de narrativa e alucinação, o produto mais óbvio dos videojogos. Esse espaço-tempo, e essa alucinação,  é a simulação tecnológica da consciência, enfim encontrada.

 


1 Lee, Stan (argumento) e Kirby, Jack (desenho) (Set. 1963), X-Men #1, ed. 1963, Marvel Comics

2 Lee, Stan (argumento) e Kirby, Jack (desenho) (Mai. 1964), X-Men #5 - Trapped: one X—Man!, primeira aparição da “Danger Room” , ed. 1964, Marvel Comics.

3 Não se trata de um ambiente de Realidade Virtual, em que as respostas do utilizador também são intermediadas, mas sim de um efeito de imersão semelhante ao “Holodeck” da série Star Trek. Para uma descrição detalhada do Holodeck – actualmente uma impossibilidade científica -- ver: Murray, Janet H. (1997), Hamlet on the Holodeck, The Mit Press, Cambridge, Massachussetts, (ed. 2001).

4 Neste termo incluiem-se também os jogos de computadores, jogos de máquinas arcade e jogos de consolas miniturizadas sem distinção. Recorre-se ao termo videojogos para simplificar o texto.

5 Nas histórias dos X-Men, a Sala de Perigo não serve apenas o desenvolvimento dos poderes físicos (superpoderes, neste caso) mas igualmente, ou sobretudo, para treinar os X-Men a funcionarem como equipa, tal como acontece em qualquer jogo online (MMORPG ou acção) no modo cooperativo.

6 Arnheim, Rudolf (1933), Film As Art, Faber and Faber, ed. 1983, Londres, p. 31.

7 Wolf, Mark J. P. (ed.) et al., The Medium of the Video Game, University of Texas Press, 2001, Austin, pp. 56-57.

8 “User-generated reality”, vide Rushkoff, Douglas, Playing the Future: what we can learn from digital kids.

9Turkle, Sherry (1997), A Vida no Ecrã, a identidade na era da internet, Relógio de Àgua, Lisboa.

10 Arnheim, Rudolf, op. cit., pp. 32-33.

11 Murray, Janet H. (1997), Hamlet on the Holodeck, The Mit Press, Cambridge, Massachussetts, (ed. 2001), p. 48.

12 Sobre este assunto consulte-se o artigo “A Incerteza em Ciência” in Feynman, Richard (1998), O Significado de Tudo, Gradiva, ed. 2001, Lisboa.

13 Virilio, Paul (1995), A Velocidade de Libertação, Relógio d’Água, ed. 2000, Lisboa, pp. 33-34.

14 McLuhan, Marshall, "Marshall McLuhan: A Candid Conversation with the High Priest of Popcult and Metaphysician of Media", Playboy, Mar. 1969, Playboy Enterprise Inc.

15 Green, C. Shawn e Bavelier, Daphne (Mai. 2003), Action video game modifies visual selective Attention, Nature Vol 423, Nature Publishing Group, ed. 2003, pp. 534-537.

16 Green, C. Shawn e Bavelier, Daphne, op. cit., p. 534.

17 Os não jogadores jogaram Medal of Honor durante uma hora num período de dez dias após os quais os seus resultados melhoraram. Um segundo grupo dedicou-se a jogar Tetris, e os seus resultados praticamente não se alteraram. O Tetris, note-se, não descreve um espaço imersivo.

18 Rushkoff, Douglas (1996), Playing the Future: what we can learn from digital kids, Riverhead Books, ed. 1999, Nova Iorque, p. 5.

19 Rushkoff, Douglas, op. cit., p. 5.