Se é certo que “o tumulto dos humanos” os coloca ao alcance da ira dos deuses, como é afirmado na Epopeia de Gilgamesh (e como surge evocado em epígrafe do Editorial desta revista), não parece que estes tenham hoje uma autoridade determinante no restabelecimento de uma pulsão ordenadora. Convém recordar que os deuses já haviam ressurgido em plena modernidade quando, no período romântico, foram evocados enquanto figuras cuja ausência era determinante e constituía, ela própria, a fonte do tumulto humano. O hiato entre os homens e os deuses transformou-se numa complexa malha de rupturas que indeterminavam o humano. Ora, o tumulto que a Nada espelha não é aquele que se abre na ausência dos deuses, mas antes aquele que é sinal de presenças inominadas entre nós, presenças sem nome que, por contágio, trazem a presença humana à sua estranheza essencial. Esta revista é diferente de todas as que conhecemos no panorama editorial português precisamente porque fala a partir das disfunções dos saberes, dos seus hiatos narrativos, da sua heterofonação.
Este projecto, cuja continuidade incumbe a uma pequena equipa coordenada por João Urbano, traça as linhas da polarização contemporânea da experiência, assinala o facto de nenhuma experiência contemporânea traçar o seu contorno, esvaindo-se, consequentemente, toda a estrutura exemplar que daí pudesse advir. Nada fala, então, da ausência que nos infunde a subsistência de experiências in-contornáveis para as quais nos faltam os nomes. É o caso, por exemplo, dos “algoritmos genéticos” evocados na entrevista a John Holland: o entusiasmo que lhe detectamos (e o entusiasmo expressava a proximidade dos gregos ao deus) quando fala da co-habitação da matemática e da genética nessa metáfora do espaço que são os campus universitários onde circula leva-nos a concluir que todo o saber é hoje construção de metáforas. Porquê? Serão efectivamente estéreis e cegas as teorias que hoje nascem sem um tropo linguístico? Como diz Holland, “os cientistas raramente escrevem acerca da metáfora. Poucos o fizeram.” Se o fizessem seria uma atitude epigonal: as técnicas que se tornaram autónomas da Ciência (e as que contam para a Nada são-no) deslocaram o campo semântico da metáfora, assumindo os processos electromagnéticos ou genéticos como o terreno da surpresa linguística. O problema, se o há, reside no facto de a poesia do mundo nos ter abandonado. Se esse abandono foi uma experiência recorrente do humano, ele aparece agora, paradoxalmente, como poiesis de si das coisas. Ora, uma coisa cujo poder metafórico é mais poderoso que o da língua humana emudece-nos, ao mesmo tempo que nos oferece uma língua inédita. Daí o tumulto de que falámos: não são os entes que chocam uns com os outros, são as suas poéticas que necessitam de máquinas tradutoras sempre renovadas e claramente insuficientes.
A Nada é dedicada, mais do que às personalidades humanas como Holland, François Roche, Eduardo Kac ou Eduardo Reck de Miranda, aos seus híbridos, à naturalização destes, à sua socialização e, numa palavra, à sua mundanização. Quando Jens Hauser discute o estatuto dos artistas biotec, devemos interrogar a abordagem biotecnológica da prática artística, não como o lugar da comunhão entre arte e ciência – que nos parece constituir o aspecto mais ingénuo deste projecto – mas antes na sua significação histórica: uma arte que culmina o projecto moderno da lingua universalis ao mesmo tempo que se faz língua de um outro. Na nossa perspectiva, e ao contrário do que afirma Hauser num dos textos mais estimulantes deste número, a atracção emocional desta arte não provém da “integração do vivente num processo estético”, mas abre-se na experiência tardomoderna do niilismo que, como tal, não deveria ser apropriada por nenhuma das velhas categorias com que a metafísica descreve a relação do sujeito com o mundo. A ironia reside no facto destes dispositivos híbridos oferecerem à metafísica um lugar plausível, o último, o mais dissimulado.
Nada não é uma revista niilista. Como poderia sê-lo numa época onde toda a afirmação do niilismo escapa ao sujeito? Contudo, as suas páginas mostram-se abertas ao convívio com “o ente que é nada”, como diria Severino. Se niilismo há, perpassa aqui na sua forma mais serena, aparentemente pragmática, por vezes irónica, mas sempre elementar, quase mineral. Este é um niilismo à escuta. Não é afirmativo e muito menos reactivo.
Se ainda podemos falar de niilismo, não o faremos, certamente, na posição do sujeito que se espraia nas suas tópicas mais ou menos reactivas, mais ou menos intempestivas. Esse horizonte abandonou-nos, permanecendo um niilismo remanescente, próprio dos objectos e, em particular, dos objectos técnicos. Estes convocam-nos a um olhar pós-nietzschiano que, subitamente, abandona toda a réstia de consideração histórica em torno do niilismo, para mergulhar inteiramente no profundo paradoxo em que a história do pensamento ocidental envolveu o ser: aqui, toda a afirmação se converte na doação de “nada”. Aquilo que “nada” é age esteticamente, mas não constrói um lugar estético. O ente nadificado age politicamente, mas não pode contratualizar o seu lugar na polis.
Assim, Nada é herdeira do mundo ideal em que a metafísica nos enredou como construtores porque “niilista é aquele que julga, do mundo que é, que não deveria ser, e, do mundo como deveria ser, que não existe” (Nietzsche).