Há alguns anos atrás, ainda eu assinava a Wired porque a Internet demorava a explodir e a informação era menos abundante, William Gibson deu uma entrevista em que se afirmava assustado. Assustado porque aquilo que descrevera distopicamente nos anos 80 como o ciberespaço (“uma alucinação colectiva global”) estava a tornar-se num ideal para toda uma geração, um planeta, uma economia.
Sendo seguidor da obra de Gibson, apercebo-me de como as preocupações expressas nessa entrevista se foram traduzindo nos seus romances, até que o último (Pattern Recognition), abandona finalmente um mundo das distopias futuras cada vez mais parecido com o real para se situar na actualidade. O que é interessante nisto é que o presente de Gibson, chegados que estamos ao século XXI, é muito semelhante ao seu futuro, tal como o descreveu no passado. Confusos?
Segundo conta, William Gibson teve a ideia do ciberespaço ao olhar para as máquinas nos salões de jogos, imaginando se, por trás de todas elas, existisse de facto um lugar virtual, um espaço imaginado, uma matriz interligando-as e criando uma espécie de mundo para além do mundo. A ideia não é particularmente original como conceito e lembra, sem irmos muito longe, o mapa recobrindo o território de Borges.
O que é realmente interessante é que a ideia de Gibson nos tem servido bem como metáfora para um mundo que se vai construindo na Internet e em todos os “lugares” a que estamos cada vez mais ligados pela tecnologia. Matrix é um bom ponto focal de todas estas tendências na cultura contemporânea, se excluirmos (ou talvez não) todas as suas fraquezas como filme, que se acentuam ao longo da triologia. Contudo, se foi a partir do mundo dos jogos que germinou na cabeça de Gibson a ideia dessa “alucinação”, é talvez ao mundo dos jogos que vale a pena ir buscar os padrões que ainda hoje condicionam a sua realização tecnológica e cultural na nossa sociedade. É nos jogos que o presente parece mais empenhado em apanhar esse futuro imaginado.
Primeiro os números. Há mais de 100 milhões de unidades Playstation no mundo todo, das quais cerca de metade são Playstation 2, e mais de 30 milhões de Game Boy Advance, só para citar os dois casos de sucesso mais estrondoso. A indústria dos jogos, nos Estados Unidos, vale mais de dez mil milhões de dólares, e no ano passado, só a Electronic Arts, uma das maiores editoras de jogos do mundo, teve receitas da ordem dos 2,5 mil milhões de dólares. Como ponto de comparação, assinale-se que as estreias de cinema em sala, nos Estados Unidos em 2003, mal passaram dos nove mil milhões de dólares.
É claro que não vale a pena comparar os jogos com o cinema, até porque os jogos, somados ao DVD, à TV Digital, por cabo ou satélite, à Internet e tudo o mais que nos ocorrer, são apenas mais uma peça na luta pelos centros de entretenimento das salas de estar das famílias. Hoje em dia, aliás, não há blockbuster de verão no cinema que não venha acompanhado do respectivo jogo. Todas as plataformas de jogos de próxima geração, a maior parte das actuais inclui a possibilidade de ligação em rede. Desapareceu a consola solitária, vai nascendo mais um pouco de ciberespaço.
Não é, contudo, apenas na sala de estar que os gigantes das plataformas de jogos se posicionam, para em 2005/2006 atacarem com novas gerações de consolas. Em todos os lugares, os jogos são cada vez mais multi-utilizador, portáteis e em rede.
Na Internet, existem dois tipos claros de jogadores: o jogador que não quer ter de aprender nada de especial para jogar, e por isso joga o que sempre jogou (xadrez, damas, cartas, etc.) com jogadores conhecidos ou desconhecidos do mundo todo; o jogador hard core, geralmente mais jovem, que joga jogos multi-jogador de acção ou RPG (Role Playing Games), um verdadeiro fenómeno, com milhões de jogadores no sudoeste asiático, num paradigma de interacção em tudo semelhante ao ciberespaço de Gibson ou ao Metaverse de Neal Stephenson.
A Internet, contudo, continua a pressupor uma utilização sobretudo sedentária, em casa, na escola ou no trabalho.
A massificação do uso dos telemóveis e a generalização das características multimedia nos terminais (Java, ecrã a cores, GPRS, UMTS) torna-os finalmente plataformas apetecíveis para a sedenta indústria dos jogos. E uma nova guerra se desenha aqui: a Nokia, gigante dos telefones móveis, tenta com dificuldade entrar no mundo dos jogos, via N-Gage; a Sony, gigante das consolas, lança a sua primeira consola móvel, com possibilidades wireless e de consumo de música e vídeo: a Nintendo, dominadora quase solitária das consolas portáteis, inova com a Nintendo DS, também desenhada para jogos multi-utilizador.
Do lado das plataformas móveis é onde está a acontecer maior inovação, com jogos geo-referenciando a localização real do utilizador, usando Java, SMS e MMS, como Undercover da Ydreams. Com a explosão das novas plataformas, a inovação vai continuar, na sala de estar e fora.
Por exemplo, se neste momento há já cerca de três milhões de asiáticos que todos os meses se transformam em super-heróis e combatem os vilões ao serviço do “mal” na cidade imaginária de Paragon, no jogo online City of Heroes, imaginem como será quando esses heróis e vilões puderem cruzar-se em Wi-Fi ou Bluetooth ou UMTS nas ruas de Seul ou Tóquio.
Alucinante, tudo isto. Digo eu, que acho que o Sr. Gibson tinha razão. Com ligações de banda larga, com fios ou sem eles, consolas inteligentes na sala de estar, telemóveis que nos permitem jogar, consolas portáteis que nos deixam ver filmes, deixamos de aceder ao ciberespaço sentados em frente a um PC e aos poucos, a sua matriz rodeia-nos, ubíqua. Esqueçam a Internet como a conhecem; joguem, para perceber o futuro.