«Life imitates art far more than art imitates life.»
Oscar Wilde
«Life doesn’t imitate art, it imitates bad television.»
Woody Allen
Gatinharam na década de 60, insinuaram-se em nossas casas e nas salas de arcade nos anos 70, pediram direito de residência nos 80 e assumiram-se como cidadãos de pleno direito nos 90. Em períodos quase coincidentes foram ignorados, depois subestimados, de seguida receados, finalmente acolhidos, mas ainda não aclamados. Fala-se dos videojogos, ou, num sentido mais alargado, daquilo que resultou do cruzamento entre o jogo - um dos mais antigos fenómenos sociais - e das novas tecnologias digitais da informação. O que acaba de ser descrito pretende resumir - correndo o risco inerente a qualquer periodização - o que é visível da sua curta história. Seria talvez necessário esperar pela viragem do milénio para que alterações mais profundas (no duplo sentido da palavra) se tornassem manifestas. Ao contrário da catástrofe anunciada nos primeiros estudos académicos, quase todos eles devedores de uma perspectiva psicologizante, as crianças não se tornaram mais violentas nem menos sociáveis: se assim fosse, as actuais faixas etárias dos «vinte-e-poucos» aos «trinta-e-muitos» estariam repletas de celibatários e/ou internados e as prisões cheias de ludodependentes.
Algo contudo mudou. Mudaram os utilizadores, naturalmente: eram maioritariamente adolescentes do sexo masculino e hoje em dia disseminam-se pelas diferentes faixas etárias e sociais. A contrariar este «aplanamento» das estatísticas, os públicos-alvo especializaram-se, o que é de esperar sempre que entram em cena diferentes «géneros» - e isto apesar de até mesmo os géneros se cruzarem e contaminarem. Mudaram ainda as capacidades técnicas do hardware, possibilitando um impressionante realismo (comparando com o que se produzia há vinte ou mesmo dez anos, já que a «experiência total» da realidade virtual ainda está longe). Contudo, essas são as mudanças óbvias a que ainda há pouco o pensamento procurava esquivar-se, que padecem do pressuposto de que a interacção entre videojogos e sociedade se faz tangencialmente. Se assim fosse, o jogo influenciaria apenas aqueles que jogam, deixando intocado o resto a não ser por um segundo processo causal (exemplo: se jogar tornasse as crianças mais violentas, as repercussões óbvias sobre os «não jogadores» da família seriam de segundo grau, não directamente decorrentes da prática).
No fundo a verdadeira mudança não é aquela, óbvia, que se dá a ver em cada fornada mensal de videojogos mas sim a mudança de atitude do pensamento que mais uma vez se interessa por um fenómeno a que chega atrasado (já tinha acontecido com o cinema e a televisão). Aplicam-se agora as estafadas grelhas de pares: real/ficção, paz/violência, cultura/barbárie e buscam-se avidamente os sintomas que permitam encaixar no videojogo nas habituais categorias da filosofia ou da arte dando à «coisa» uma legitimidade séria digna de aceder ao Olimpo das ideias e das artes.
A proposta que inspirou este número da revista Interact - e que, sem que disso o soubessem, os autores convidados não deixaram de confirmar - é a de que entre a vida e o jogo a relação é como a que se dá entre a água e o açúcar. Abreviando, a «água» fica cada vez mais «doce». Quer isto dizer que a vida está cada vez mais «lúdica»? Será o videojogo um ampliar da “doce” vida do sujeito-espectador cada vez mais senhor da sua experiência, dominante sobre as outras formas de experiência e dispondo de um mundo (ciberespaço) onde realiza as sua utopias - senhor autónomo do espaço, do tempo, da vida e da morte? Ou será o videojogo um sintoma para lembrar que algo está a ficar esquecido? Que não se fuja de um simplismo para logo cair noutro. Como nos diz Florian Rötzer num breve ensaio publicado na revista online Receiver, «Logo que percebemos que os jogos deixam de ser apenas o xadrez, o futebol, o rummy ou a roleta, passando a ser também actividades como a de tentar controlar sistemas complexos como os de Sim Life ou Sim City, a projecção lógica é que», e passamos a enfatizar, «as vidas dos indivíduos e todas as suas acções são parte de um jogo em que participam».
O jogo dissemina-se na vida, tornando-a porventura mais interessante, como se incarnássemos personagens duma narrativa que começou por ser épica, mas que se torna ética ou mesmo política; a vida dissemina-se no jogo, tornando-o mais complexo e desafiante (ou apenas irritantemente incontrolável). O jogo torna-se inescapável, omnipresente de tão portátil. Sem se ter anunciado, ganha «de facto» o estatuto de medium socializador que «de direito» lhe continua a ser negado. Como se tratasse de um «museu imaginário» (mas com a aliciante da interactividade), permite explorar dimensões que a «vida quotidiana» quis esquecer. Habitua-nos a novas formas de perceber o espaço, predando ao mesmo tempo que transforma «visões do mundo» tão duráveis como a perspectiva e os modelos cartesianos, o que permite renovar linguagens visuais a que já estávamos demasiado habituados como é o caso do cinema, ou, de modo por enquanto mais subtil, a da arquitectura. É aliás um dos responsáveis por novas formas de arte em que o artista se reinventa enquanto programador e/ou o espectador renasce enquanto «interactor».
Procurando acompanhar o passo da indústria, nalguns círculos académicos pretende-se inclusive que o (video)jogo seja o objecto de uma nova disciplina, a ludologia. Com um pouco menos de imodéstia, acreditamos que é pelo menos merecedor de jogo - o jogo da interpretação - este número da Interact.